Real Bodies. Cadáveres que são obras de arte

Real Bodies. Cadáveres que são obras de arte


O corpo humano vai estar a partir de amanhã em exposição na Cordoaria Nacional. É preciso ter estômago – e estômagos não vão faltar aqui


“Isto, no fundo, é um computador.” A conclusão é tirada por alguém a meio da apresentação de “Real Bodies”, a exposição que chega amanhã à Cordoaria Nacional e que mostra o interior do corpo humano. Com corpos verdadeiros, entenda-se.

Se está à espera da típica exposição de domingo para passear com os miúdos sem desconforto, vá preparado. 
Aqui pode olhar para o interior de corpos, em carne e osso e com a carne separada do osso se for preciso. Pode ver fetos até aos cinco meses, pulmões negros do tabaco, cancros de vários órgãos e até um corpo completamente talhado. Maravilhas da ciência, até porque isso de estudar pelos manuais escolares é coisa do século passado.

Em “Real Bodies”, e a menos que seja médico e esteja habituado a estas coisas, o mais provável é ficar de boca aberta. Foi esta a reacção da maior parte das pessoas que passaram por Jesolo, uma cidade balnear em Veneza, onde a exposição esteve “à experiência” antes de rumar a Lisboa, adianta a curadora Laura Navarro Alegria. “É a primeira vez que uma exposição desta dimensão faz uma digressão por diferentes cidades”, continua. “E Lisboa é logo a primeira.”

Ao todo são 1700 metros quadrados com mais de 350 órgãos e corpos humanos verdadeiros, conservados através de uma técnica especial que faz com que os corpos mantenham o seu aspecto original.

Talvez esta conversa lhe seja familiar, até porque Lisboa já recebeu uma exposição deste género, “O Corpo Humano Como Nunca o Viu”, em 2007. Na altura eram “17 corpos humanos inteiros e mais de 250 órgãos”. Agora, os números são mais ambiciosos e, curiosamente, os bilhetes de entrada são mais baratos (mas, ainda assim, a 15,50 euros para adultos e 11,50 euros para crianças entre os 5 e os 12 anos).

“[Em Itália] as pessoas vinham com uma ideia pré-concebida de que esta era uma daquelas exposições em que davas uma olhadela e já estava, mas ficaram de boca aberta”, conta a curadora. “Há muita informação interessante para ler e muita gente acabou por vir duas vezes.”

Talvez seja o seu caso e a exposição é tão grande que é “também uma boa maneira de fazer exercício”. “Queremos consciencializar as pessoas de que têm de se mexer. O corpo foi feito para estar em movimento, e não para ficar sentado no sofá em frente ao televisor ou à consola”, continua Laura. Mexer é o verbo, apesar de não poder mexer nos corpos em exposição.

Os corpos de “Real Bodies” também parecem estar em movimento. “A última sala é a galeria dos desportistas, com dez corpos que praticam diferentes desportos, para motivar as pessoas a mexerem-se.”

Antes disso, a exposição que começa nos ossos e nos músculos está dividida por sistemas, do digestivo ao nervoso. O último corpo a ser colocado – só na noite de hoje – será o da sala do sistema circulatório, “por ser o mais delicado”. Para Laura, é também o mais “impressionante”. “É uma sala mágica e é incrível ver a quantidade de vasos sanguíneos que temos pelo corpo”, diz.

Também a sala dos fetos, curiosamente uma das preferidas dos miúdos, pode impressionar. “É uma das parte mais interessantes da exposição porque dá oportunidade de ver a evolução do embrião desde a primeira semana até aos cinco meses. Obviamente, são tudo abortos naturais e é um assunto tratado com muito respeito.”

Os cadáveres que compõem a exposição vêm de duas universidades, de Michigan, nos Estados Unidos, e de Dalian, na China. “São elas as responsáveis pelo processo de conservação. No início era uma coisa complicada, mas agora está a tornar-se comum, principalmente nas universidades.”

É graças a esta “plastinação” que órgãos como o fígado se tornam uma espécie “de borracha de apagar”. “Depois tem de ser acolchoado numa caixa rígida.” Com os corpos, o processo de transporte é ainda mais complicado, principalmente porque estão em posições específicas. “São transportados como obras de arte. Aliás, para mim são obras de arte.”

António Gentil Martins, cirurgião pediátrico e ex-bastonário da Ordem dos Médicos, está mais do que habituado a ver corpos. Mas recomenda a exposição: “As pessoas só conhecem o exterior, a pele, e além dos médicos não fazem ideia nenhuma do que está lá dentro.”

Mais que isso, o grande aspecto positivo é que “a exposição pode estimular a pessoa a doar o seu corpo à ciência”, afirma. “Não para uma exposição, mas para ajudar ao seu desenvolvimento.”