Haverá soluções governativas não experimentadas no laboratório da democracia portuguesa? Se há, o governo de gestão não será uma delas. Curto na duração que não nas competências, diria Freitas do Amaral e alguns constitucionalistas, como Carlos Blanco de Morais (ver caixa). E os exemplos estão aí a prová-lo. José Sócrates, por exemplo, apesar de já exonerado, negociou com a troika um empréstimo de 78 mil milhões. E muitos governos vão ter de passar por S. Bento até que a dívida se pague. Mas também Francisco Pinto Balsemão, até Junho de 1983, foi primeiro-ministro durante seis meses de um governo de gestão. E Santana Lopes até aprovou um Orçamento depois de dissolvida a Assembleia.
O PEC de Sócrates A 21 de Março o governo liderado por José Sócrates dá a conhecer as medidas que integram o quarto Plano de Estabilidade e Crescimento (PEC), que contemplava, entre outras medidas, cortes nas deduções do IRS, alterações dos escalões de IVA, cortes nas pensões acima de 1500 euros… em suma, cortes e mais cortes, que uniram a oposição, direita e esquerda, para o chumbar.
Logo no início do debate parlamentar o governo anunciava que José Sócrates tinha audiência marcada com o Presidente da República para as 19 horas. E às 20 horas tudo se confirmava: a oposição chumbava em peso e o PR ouvia Sócrates. O ministro dos Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão, viria responsabilizar a oposição pela crise política. José Sócrates caía, a Assembleia da República era dissolvida, mas o XVIII governo mantinha-se em gestão até 21 de Junho. O rating da dívida portuguesa caía e as taxas de financiamento da dívida portuguesa subiam. Sócrates recusava recorrer ao resgate, mas multiplicavam-se declarações de banqueiros, calcorreando noticiários televisivos clamando pelo resgate.
A 31 de Março de 2011, Passos Coelho e Miguel Macedo assinam uma carta do PSD dirigida ao PR e a José Sócrates pedindo o resgate. Um dia depois, uma nova carta de igual teor, mas desta vez assinada por Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, é dirigida aos mesmos. No dia seguinte, 2 de Abril, Paulo Portas faz declarações de apoio à ideia do resgate e dia 4 os banqueiros portugueses (Ricardo Salgado, Carlos Santos Ferreira, Faria de Oliveira, Fernando Ulrich e Nuno Amado) foram ao Ministério das Finanças fazer o pedido a Teixeira dos Santos, então ministro das Finanças do governo de gestão.
O ministro concorda com a ideia e faz declarações nesse sentido, mas a questão levanta-se. Poderá um governo de gestão negociar com a troika (Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional e Comissão Europeia)? Freitas do Amaral, que integrara o primeiro governo de José Sócrates como ministro dos Negócios Estrangeiros, garantia que “juridicamente pode”, que a Constituição não impede um governo de gestão de pedir ajuda externa. Freitas acrescentaria que “a Constituição diz que um governo de gestão pode fazer tudo o que for necessário ao país”.
E o pedido de resgate faz-se a 6 de Abril de 2011.
O governo de Santana Também do governo de Santana Lopes, primeiro-ministro do XVI Governo Constitucional, se dizia ter vivido em gestão desde praticamente 30 de Novembro de 2004 a 12 de Março de 2005, altura em que, com base nos resultados eleitorais, José Sócrates assumiria funções de primeiro-ministro. Mas mais tarde Sampaio, em entrevista, viria a esclarecer que, afinal não. Santana viveu sempre num governo em plenas funções.
Jorge Sampaio, a 17 de Julho de 2004, dava posse ao governo de Santana Lopes depois de ter aceitado a demissão de Durão Barroso, líder do XV Governo Constitucional. Santana Lopes era então vice-presidente do PSD, e nem sequer era deputado, e o seu governo viveria sempre num clima difícil. Desde logo a tomada de posse, marcada pela atrapalhação de Santana, que trocou as folhas do discurso, ou Paulo Portas espantado ao ser empossado ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar. Tudo corria mal. Salvava-se a Assembleia, que aprovava o programa.
Só que, dois meses passados, já o governo era confrontado com o atraso do início do ano lectivo provocado por erros na colocação de professores. Na mesma altura surgia a polémica com o comentador da TVI Marcelo Rebelo de Sousa, depois de declarações do ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, clamando pelo direito ao contraditório no espaço de opinião de Marcelo.
A situação agrava-se um mês depois quando Santana sabe da demissão do ministro da Juventude, Desportos e Reabilitação, Henrique Chaves, através da Lusa, acusando Santana Lopes de falta de lealdade e de coordenação. E, como não há duas sem três, no semanário “Expresso”, Cavaco Silva acusava o governo de fraco desempenho na área económica.
Sampaio não aguenta e chama de urgência Santana para uma reunião a 29 de Novembro. No dia seguinte anuncia a intenção de dissolver o parlamento e marcar eleições antecipadas. Pensou-se que Santana ficaria em gestão até à tomada de posse de José Sócrates. Em entrevista, Jorge Sampaio esclareceria: “Eu não demiti o governo, eu dissolvi a Assembleia. Só demiti o governo mais tarde, e um governo que tem a Assembleia dissolvida pode continuar em funções.” Santana Lopes só foi exonerado pelo decreto 18/2005 de 12 de Março e durante aquele período aprovou vários e importantes decretos, para além de um Orçamento. A 2 de Fevereiro de 2005 aprovou em Conselho de Ministros o decreto-lei que estabelece as normas de execução do Orçamento do Estado para 2005.
O Executivo de Balsemão O VIII Governo Constitucional, liderado por Francisco Pinto Balsemão, fica seis meses em gestão, até o IX, liderado por Mário Soares, tomar posse. O Presidente aceita a demissão de Balsemão a 23 de Dezembro, dissolve a Assembleia e marca eleições. Mário Soares só tomará posse a 9 de Junho.
Alguns outros tiveram períodos de gestão mais curtos. É o caso do III Governo Constitucional, de iniciativa do Presidente Ramalho Eanes, liderado por Nobre da Costa, que cai na sequência de uma moção de rejeição do seu programa a 14 de Setembro de 1978, mas o executivo seguinte (IV), ainda de iniciativa presidencial, e liderado por Mota Pinto, só toma posse a 21 de Novembro de 1978. Mota Pinto também se mantém num governo de gestão, mas apenas mês e meio, entre a aceitação do seu pedido de demissão e a tomada de posse da sua sucessora, Maria de Lurdes Pintasilgo.
Governo de gestão não está reduzido à gestão corrente
“Existe uma decisão do TC, o Acórdão n.º 65/2002, que se tornou um leading case na matéria”, afirma o constitucionalista Carlos Blanco e Morais ao i. E acrescenta: “O governo não está reduzido à ‘gestão corrente’, como sinónimo de mera administração ordinária, como se afirma usualmente na imprensa.
Se tal sucedesse, como reconhece o próprio Tribunal, a administração paralisaria, com grave prejuízo para os negócios públicos. É na verdade possível ao governo, à luz da interpretação que o TC faz da Constituição, praticar actos políticos e legislativos de conteúdo inovador que sejam inadiáveis e indispensáveis em matérias especialmente relevantes, na medida em que a sua não prática possa redundar num grave prejuízo para o interesse colectivo.”