© Pedro Nunes/Lusa
Todos sabemos muito bem o que são escutas telefónicas, por isso não cabe explicar o óbvio. Uma escuta é algo tão justo e legítimo, à luz da ética, como ouvir atrás das portas ou espreitar por buracos de fechaduras. A diferença é que quando apanhamos uma criança a escutar atrás de uma porta, damos–lhe um correctivo. E se for um adulto quem escuta, joga-se porta fora. A quem faz escutas telefónicas ou não se faz nada, porque não se sabe que as fez, ou elogia-se pelo bom serviço prestado à descoberta da verdade.
Neste momento, não tenho dúvidas, já o leitor levantou o sobrolho: o cronista ensandeceu! Mas que diz? Então as escutas telefónicas não são meios legítimos de obtenção de provas em processo criminal? Tão admissíveis que até têm previsão legal?
Tão bem reguladas que “só podem ser autorizadas […] se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução mediante requerimento do Ministério Público”?
É, sim senhor: tem o leitor toda a razão – isso diz a lei. E terá também razão se disser que só são admissíveis escutas legais para crimes puníveis com pena de prisão superior a três anos.
Mas atenção que este limite é risível… é que dizendo a lei ser apenas para crimes puníveis com pena superior a três anos, é o mesmo que dizer que é, na prática, para todos os crimes que não sejam ninharias: puníveis com pena superior a essa são a esmagadora maioria dos crimes, sejam médios, graves ou gravíssimos.
Não fiquem quaisquer dúvidas! Hoje em dia, a única barreira que pode proteger todo e qualquer ser humano perante uma lei tão desbragada é o sentido de justiça e de legalidade, bem como o bom senso, do juiz das garantias, o juiz de instrução criminal, a quem incumbe fazer o dificílimo e gravíssimo juízo que a lei exige para admitir uma escuta telefónica.
Mas isso não afasta o óbvio nem pode deixar ninguém dogmaticamente descansado, como veremos na parte B deste texto.
Voltando ao que hoje nos ocupa, cabe sublinhar que uma escuta telefónica, como outros meios sibilinos de investigação, traz aos ombros gravíssimos perigos práticos e teóricos.
Hoje recordaremos apenas os perigos práticos, para boa ordem das coisas, pois noutras jurisdições são coisa sabida, ponderada e levada em conta, para pôr no seu devido lugar este modo de obtenção de prova.
Escutas telefónicas são “excertos” da realidade, não a realidade toda, com todos os perigos que a descontextualização gera. Além disso, em quase 100% dos casos são comunicação informal, em que há muitos subentendidos que ninguém tem preocupação de esclarecer, pois os intervenientes compreendem por definição o que terceiros não compreenderão nunca.
Com efeito, a polissemia geral dos discursos orais e escritos (escrever é ler duas vezes, diz o povo) agudiza-se nas chamadas telefónicas, nos SMS e até nos emails.
Daí não ser raro tirarmos conclusões fantásticas de frases de outros a que, na nossa boca, nunca autorizaríamos os sentidos que, sendo alheias, lhes atribuímos.
Para nosso bem, tudo isto tem de começar a ser ponderado no foro!
Advogado
Escreve à sexta-feira
(1)Tomo de empréstimo o título de M. Terestchenko “Du bon usage de la torture”, Cahiers Libres, 2008.