Carlos Blanco de Morais. “Não me surpreende que o PR acabe por chamar o líder do PS a formar governo”

Carlos Blanco de Morais. “Não me surpreende que o PR acabe por chamar o líder do PS a formar governo”


Carlos Blanco de Morais, constitucionalista, ex-consultor de Cavaco Silva, professor na Faculdade de Direito de Lisboa, em entrevista ao i considera politicamente “inverosímil” um governo de iniciativa presidencial e recorda que Mário Soares já recusou dar posse a Fernando Nogueira como vice-primeiro--ministro.


No quadro constitucional é viável um governo de iniciativa presidencial? 
Parece-me inviável no plano político, mas admissível em termos puramente jurídicos. Se atentarmos apenas na Constituição, um governo de iniciativa presidencial é tão admissível hoje como no período 1976-1982. Perante um cenário parlamentar em que nenhum partido ou coligação pré–eleitoral tenha obtido maioria absoluta e ante dificuldades na criação de uma nova maioria com garantias de duração e consistência, o Presidente pode sempre nomear um primeiro-ministro da sua confiança que forme um governo de técnicos ou independentes. Se tal sucedeu com  o governo de Mario Monti em Itália, país servido por um sistema parlamentar e em que o Presidente da República tem funções cerimoniais e escassamente arbitrais, por maioria de razão pode suceder em Portugal. Isto porque no nosso país, já com três precedentes deste tipo de governos, impera o semipresidencialismo. Tal implica que o governo é institucionalmente responsável perante o Presidente, o qual dispõe de uma maior liberdade de escolha do primeiro-ministro, sobretudo no caso de inexistência de maiorias parlamentares. A competência de livre dissolução do parlamento, associada aos poderes anteriores, reforça o estatuto do Presidente como regulador do sistema político: ele é o garante do regular funcionamento das instituições de acordo com a visão que adopte desse mesmo funcionamento.
E politicamente, tendo em conta a actual composição do parlamento?
Politicamente, um governo de iniciativa presidencial não me parece uma solução verosímil. Por três razões. Em primeiro lugar teria de haver um suporte parlamentar mínimo, que manifestamente não existiria se fosse nomeado um governo de iniciativa do Presidente. Os governos de Mota Pinto e Lurdes Pintassilgo passaram com a tolerância ou o apoio de uma maioria parlamentar, o mesmo tendo ocorrido com o governo de Monti na Itália. Ora na presente conjuntura, de alta tensão, o programa do governo seria rejeitado liminarmente pela maioria parlamentar formada por PS, PCP e Bloco de Esquerda. Em segundo lugar porque, demitido o mesmo governo, ele ficaria em gestão durante um período incerto, com menor legitimidade política que o actual em idênticas circunstâncias, passando toda a pressão política, turbulência financeira e contestação social a recair sobre o Presidente da República, o único suporte político desse governo amputado de pés e mãos. Julgo que seria um cenário dificilmente aceite pela Presidência da República. Por fim, porque não vejo ninguém que aceitasse, nas condições actuais, integrar semelhante governo para sair ingloriamente carbonizado. Espanta-me mesmo que haja constitucionalistas que tenham entendido que esta solução seria possível e preferível à subsistência do actual executivo em gestão.
Porque é que o sistema político português não admite a figura do impeachment?
Mas a Constituição prevê uma espécie de impeachment. O art.o 130.o admite que, por crimes praticados pelo Presidente no exercício das suas funções, a Assembleia da República, mediante maioria de dois terços, instaure um processo de responsabilização penal daquele titular junto do Supremo Tribunal de Justiça, implicando a condenação do chefe de Estado a sua destituição do cargo. Não vejo, porém, qual a pertinência do impeachment ou dos institutos seus derivados no caso presente. Que crime é que o Presidente poderia praticar se nomeasse um governo de iniciativa presidencial ou mantivesse um governo em gestão até ao final do mandato?
Depois de chumbado o governo de Passos, o PR devia chamar o líder do segundo partido?
Apesar de não estar obrigado a fazê-lo, não me surpreende que acabe por chamar o líder do PS a formar governo. Num sistema semipresidencial, o Presidente não é um notário e não está obrigado a nomear um governo composto pelos partidos que perderam as eleições parlamentares, mesmo que formem maioria. O Presidente foi eleito por sufrágio universal, detém uma legitimidade própria e é ele que nomeia o primeiro-ministro, o qual não é investido formalmente pela Assembleia da República, como sucede nos sistemas parlamentares. Julgo, contudo, que o circunstancialismo político e financeiro pode levar o Presidente a nomear o líder da oposição. O facto de não poder dissolver o parlamento até ao final do seu mandato e de o actual governo não ter claramente vontade de funcionar em gestão caso seja demitido, podem impelir o Presidente a buscar, entre uma ponderação de custos e benefícios, uma solução alternativa sustentada numa maioria parlamentar, mesmo transitória.
E pode impor condições na formação do governo?
Dentro de critérios de razoabilidade, pode condicionar, no contexto da sua magistratura de influências. Critérios como o respeito pelos compromissos internacionais do Estado parecem já estar subjacentes no discurso presidencial subsequente às eleições. Mas outras garantias, como a de um acordo formal de governação minimamente estável e consistente entre os partidos que suportam a nova solução governativa ou a fixação de critérios limitativos do acesso dos militantes de certos partidos a determinadas pastas são hipóteses possíveis. Não nos esqueçamos que é o Presidente que nomeia os restantes membros do governo por proposta do primeiro-ministro e que já houve a recusa de Mário Soares de nomear Fernando Nogueira vice-primeiro-ministro. Existem igualmente precedentes internos e externos que sustentam essa limitação, que opera apenas na esfera política. É o caso dos condicionamentos específicos que Sampaio impôs ao governo de Santana Lopes. E é o caso da Áustria, outro sistema semipresidencial, quando o Presidente Klestil no ano 2000 se confrontou com uma coligação entre o Partido Popular (Conservador) e o Partido de Liberdade (direita radical eurocéptica). Klestil, que podia rejeitar a proposta, obrigou os dois partidos a assinarem um acordo de aderência a valores europeus e democráticos e recusou a nomeação de dois candidatos de extrema-direita para postos no governo. Em face desta decisão, ninguém gritou “golpe de Estado”, “fraude à Constituição”, “partidos de segunda” ou “violação do princípio da legitimidade parlamentar”.
Quais seriam as prioridades numa eventual revisão constitucional?
Julgo que, salvo ocorrências cataclísmicas ou equiparadas, não haverá condições mínimas para qualquer revisão constitucional nesta legislatura. Se for empossado um governo envolvendo o PS e os partidos marxistas à sua esquerda, o chamado “ arco da governação” que vigorou 40 anos dissolver-se-á no contexto de uma sociedade bipolarizada e radicalizada. Não haverá, durante tempo indefinido, compromissos entre os dois blocos e mesmo os acertos institucionais serão muito difíceis. Trata-se de um divórcio litigioso. Daí serem no mínimo poéticas as declarações de certos candidatos presidenciais que se propõem unir e fazer pontes numa conjuntura de absoluta clivagem política. As pontes estão e estarão por bom tempo “longe de mais” e quem insista nessa tecla junto de certo eleitorado mais conservador que alguns supõem estar previamente cativo e resignado pode sofrer uma desagradável surpresa.
O Presidente deveria passar a ter o poder de dissolução do parlamento até ao fim do seu mandato?
A actual crise política aconselha que o Presidente possa dissolver em qualquer momento do seu mandato e que o parlamento possa ser também dissolvido por aquele volvidos três meses sobre a sua eleição e não apenas volvidos os primeiros seis meses, como actualmente sucede.
Foi fácil a relação de um constitucionalista com Belém, num período em que o Tribunal Constitucional assumiu um papel particularmente mais relevante do que vinha sendo normal e mais normas foram consideradas inconstitucionais?
Como sabe, a maioria dos pedidos de controlo de constitucionalidade que integraram a “jurisprudência da crise” no período 2012-2014 foram oriundos do Presidente da República e tiveram uma taxa de sucesso de 100%. O Presidente, de acordo com os seus critérios, jurou fazer cumprir a Constituição, solicitando a intervenção do Tribunal Constitucional sempre que julgou necessário. Goste-se ou não, é a Constituição que temos e, para um especialista em direito constitucional que sirva instituições da República, a assessoria no plano do contencioso constitucional norteia-se por razões puramente técnicas e sem estados de alma. Foi, contudo, um dos períodos mais tensos mas mais ricos de debate constitucional dos últimos 20 anos.