© Filipe Casaca
Tivesse nascido Cavaco no século XVI, e escrito uma obra denominada “O Príncipe”, um pequeno livro que tentou criar um método de conquista e manutenção do poder político em que a novidade é a separação da ética da política, pondo em causa o conceito de Aristóteles que defendia a política como uma extensão da ética, vulgarmente aceite na tradição ocidental, onde os termos morais usados para avaliar as acções humanas eram os termos empregues para avaliar as acções políticas.
Tivesse Cavaco sido o primeiro a discutir a política e os fenómenos sociais nos seus próprios termos, sem recurso à ética ou à jurisprudência.
Tivesse Cavaco afirmado que todo o julgamento moral deve ser secundário na conquista, consolidação e manutenção do poder, e que a política é uma única coisa: conquistar e manter o poder ou a autoridade, ou que a única coisa que verdadeiramente interessa para a conquista e a manutenção do poder é ser calculista.
Tivesse Cavaco imortalizado a frase “os fins justificam os meios”. Possuísse Cavaco capaz pensamento, e a Renascença não fosse para ele mais que uma estação de rádio, então Boliqueime teria parido um génio.
Mas nem a criatura é Maquiavel, nem Boliqueime é Florença. Ou será?
A declaração do ainda Presidente da República foi todo um programa político em que o exercício do voto, o legítimo direito da diferença de opinião, os direitos e as liberdades, a própria democracia são meros exercícios formais que não se sobrepõem à vontade absoluta, medieval, fascistóide de um homem e do seu entendimento do poder.
Confundiu no seu delírio o ser Presidente de todos os portugueses com o mandar nos portugueses.
Cavaco afirma não estar arrependido de nada do que disse – pior ainda, pois reafirma que as suas palavras não são fenómeno de momentânea alucinação, mas sim convicção política de uma ideologia perigosa e sectária onde não cabem vários milhões de portugueses, nem os partidos a quem eles confiam o seu voto e esperanças: PS, PCP e BE.
Cavaco é moldado da mesma plasticina dos que, vivendo em democracia e ocupando funções de relevo, odeiam de facto o regime democrático, vivem dele mas não suportam terem de ser escrutinados e responder aos cidadãos pelas suas práticas.
São os que, de fatos à medida e jurando a Constituição, fazem figas e sonham, nostálgicos, com a bota cardada. Para eles, o debate é um caos, e preferem o silêncio da ordem sob ameaça e medo a alamedas de vida e desafio.
Cavaco fala de estabilidade como elemento absoluto, esquecendo, convenientemente, que escolher e ser respeitado na sua escolha é o melhor factor de respeito, e portanto, de estabilidade.
Um crispado Cavaco necessita recordar que os portugueses não são súbditos, mas sim cidadãos e homens livres. Cavaco deverá saber que a sua agressiva e grotesca declaração de tentar dividir e excluir portugueses é uma desesperada manifestação de impotência e factor de instabilidade.
Ele marcou e é o único responsável pela instabilidade política, pelo confronto entre instituições e por uma enorme e desnecessária radicalização da vida política nacional, com todas as consequências económicas que daí advenham, como já escreveram, em excelentes análises, José Pacheco Pereira e Manuel Loff, entre outros.
Porém, sobra a possibilidade de Cavaco não ser só um “capo” de partido e ter criado esta situação artificial para impor a sua solução.
Para isso teria de garantir a impossibilidade de um governo da coligação, assegurando a unidade do PS em torno de uma alternativa governativa de esquerda que não aceitará, avançando para um governo de iniciativa presidencial com uma figura de consenso ao centro político PS/PSD como primeiro-ministro, tudo em nome do interesse nacional.
Assim resgatava o PSD de uma derrota, impondo um candidato de bloco central e deixando o seu governo como legado político.
A própria linguagem já está a mudar, a semiótica e o patamar de um determinado imaginário político começa a emergir sob a forma do interesse nacional, os superiores interesses do país. Todo um programa, veremos.
“O Príncipe” está cheio de momentos intensos e falhanços, já que a qualquer momento, se um governante não calculou bem uma determinada acção, o poder e a autoridade que cultivou tão esforçadamente fogem-lhe de um momento para o outro.
O mundo social e político do príncipe é completamente imprevisível e só a mente mais calculista pode superar esta volatilidade.
Resta-nos para consolo que Cavaco o Presidente não existe. O que sobra é um homem ressentido, de tique autoritário, olhando o fim, de nome Aníbal.
Consultor de comunicação
Escreve às quintas-feiras