"A única salvação do que é diferente é ser diferente até ao fim, com todo o valor, todo o vigor e toda a rija impassibilidade”
Agostinho da Silva, filósofo e poeta
A propósito da actual situação política, entendo fazer todo o sentido que se releia (ou leia quem nunca o fez) o livro de Rob Riemen “Nobreza de Espírito”, publicado em Portugal pela Bizâncio e que tem o prefácio de George Steiner. Não só pelo conteúdo do livro, mas também pelo seu significado. O autor volta a abordar temas como o humanismo como “uma complexa noção de valores” de vida. Isto para não deixar de nos guiar pela noção do tempo, que “faz o homem regressar às fontes do seu ser”. Nesta obra, os valores clássicos das humanidades, singulares, convocam–nos para o reforço da vida do espírito. Da sua valorização, do respeito pelos poderes e da sua conformação com a nobreza de carácter e a esperança “para a civilidade e a busca da verdade”.
A chamada decência esclarecida, não conforme apenas com a ordem legal, mas também com a tradição e o costume, são essenciais para a regular convivência ético-social e política. É que no nosso país, nas últimas semanas, a esfera das palavras parece ter iniciado um caminho perigoso. De fazer submergir a nobreza de espírito e de carácter, fazendo de ambos um ideal esquecido e dispensável. São muitas as abordagens possíveis do tempo político que vivemos. Tal qual um tsunami político e social (o lado de que menos se tem falado) que inadvertida e paulatinamente nos vem sendo imposto, este tempo político corre sérios riscos de ser um tempo de rupturas mais do que políticas ou partidárias. Mas também e sobretudo um tempo de rupturas mais profundas.
Ao nível da fractura social mais alargada e percepcionada como um rasgar de muitos consensos consolidados nas últimas décadas. Que têm servido como cimento e base de um país e de uma sociedade que, apesar dos seus problemas, tem feito muitos e notáveis caminhos. Independentemente do que muitos possamos dizer e fazer, a quente e a curto prazo, sobre o assalto ao poder por parte dos defensores de um governo dos derrotados, importa ir mais fundo e não só fazer a leitura do muito que se está a pôr em causa mas também das consequências que todos sem excepção vamos sofrer.
Um país não é só um território, com povo e governo das leis. Antes fosse. Mas um país é muito mais do que isso. E é muito mais do que a sua circunstância ética e política. Um país, ao nível do Estado, em democracia, é também e muito a sua vida consuetudinária e costumeira, as suas tradições e muitos dos valores de vida na convivência ética, moral e comportamental. Estamos todos (admitamo-lo ou não) ligados e até pressionados por isso nas nossas abordagens de vida.
Manda a tradição (e bem!) que o exemplo venha de cima. Bem sabemos que algumas sociedades às vezes suicidam-se, começando pelo lado material e estatelando-se ao comprido no confronto de valores ético-comportamentais. Mas, tendo isso presente, temo muito pelo que nos poderá suceder com a actual inversão das fontes de legitimidade em alguns órgãos de soberania, com o assalto ao poder político de uma coligação negativa e contranatura e se um governo dos derrotados das eleições legislativas do mês de Outubro vingar. O que aí vem poderá não ser apenas o tempo das minorias, mas antes a imposição de uma agenda, em que o Estado irá crescer e endividar-se mais, com uma agenda ultraminoritária no domínio dos costumes. O que aí vem poderá ser uma fractura muito grave ao nível das fontes de respeito, de credibilidade e identificação com os titulares de alguns órgãos de soberania. Com rupturas em muito mais matérias do que se imagina, de norte a sul do país.
Se a nobreza de alguns espíritos existisse e não fosse um ideal esquecido, nada disto aconteceria. Ainda estamos a tempo de o evitar. Mas já poderemos ir tarde. É que nunca nos esqueçamos: toda a obediência é uma crença.
Escreve à segunda-feira