Lemos o que Marilynne Robinson escreve e é impossível não pensarmos, entre cada duas frases, que esta escrita tem de ser resultado de uma inteligência rara. Não é só o estilo no meio das palavras, não é apenas a serenidade com que toda a narrativa dramática acontece. É o mundo fictício que a autora gera a partir de realidades muito concretas e particulares.
“Lila” é o terceiro romance que Robinson localiza em Gilead, no estado americano do Iowa. Parece que não é nada que nos interesse, essa terra que na descrição da Wikipédia merece apenas uma frase: “Gilead passou a ter um posto de correios no início do século xx.”
Mas Marilynne mostra-nos que, como nos diz nesta entrevista, “a definição de ‘acontecimento’ depende de cada um”. E seguir a epopeia de um clã familiar ao longo de diferentes gerações não é só um acontecimento, é sobretudo um desafio.
Lila regressa então a Gilead, por onde a escritora passou antes com – exactamente – “Gilead”, de 2004, e “Home”, de 2008. Se o protagonista antes era John Ames, aqui centramo-nos em Lila, sua mulher, que conhecemos neste livro ainda em criança, quando foge de quase tudo na companhia de uma outra mulher, Doll, uma espécie de ama fantasmagórica.
A história depois é a de quem cresce contra tudo e todos, aproveitando a viagem para mostrar uma América muito mais distante que a que nos é mostrada habitualmente, fria e com poucas promessas, ainda assim estranhamente rica para quem dela faz um retrato literário desta dimensão. E sempre com a religião presente, entre o calvinismo e o congregacionalismo, a mesma geografia de fé que move Marilynne Robinson. Começou em 1980 com o brilhante “Housekeeping” e garante-nos que nunca vai fazer mais nada. Um óptima ideia.
É professora de outros escritores. Qual é a coisa mais importante que um escritor deve saber, qual a regra que costuma apontar aos seus alunos como essencial?
Os meus alunos são sempre escolhidos a partir de um grupo bastante grande de candidatos, por isso o trabalho que já fizeram até esse momento garante que já existe um nível de competência muito grande. O que eles realmente têm de aprender a fazer – porque muitas vezes ainda não chegaram lá – é escrever de forma autêntica, fazer uso de uma escrita que surge dos cantos mais obscuros das suas mentes. Porque só assim é possível ir além do que é convencional e deixar de ser derivativo. Ser apenas mais um é o maior perigo para quem escreve livros.
Porque gosta de ser professora? É compensador, de alguma maneira?
Ensinar é a melhor maneira de aprender. Ser professora não tem sequer um valor que possa quantificar. Talvez esse trabalho tenha tido uma outra missão quando comecei a fazê-lo. Hoje vivo apenas e só do meu trabalho enquanto escritora, e se assim é também devo lembrar que no início ser professora ajudou-me a não depender tanto dos livros quando ainda tinha um percurso muito curto.
Embora tenha escrito muitas outras obras, em 35 anos publicou apenas quatro romances. Porquê? É especialmente curioso haver 24 anos de distância entre “Housekeeping” e “Gilead”…
Durante todos esses anos escrevi muitas coisas que se inscrevem no campo da não-ficção. Quando escrevo estou constantemente a perseguir um qualquer fascínio que me ocupa a mente há muito tempo. Como causa e consequência disso mesmo, aspectos como a produtividade nunca foram importantes, nunca considerei nada disso enquanto escritora. E além de não pensar nisso não sinto qualquer pressão da minha editora.
De qualquer maneira, os tais quatro romances valem-lhe constantemente elogios como “uma das mais importantes escritoras americanas”.
E sinceramente fico muito contente com isso, acho incrível. E parece-me também que talvez tenha feito bem em ditar o meu próprio tempo de escrita.
O que gosta mais de escrever, romance ou não-ficção?
Ambos são importantes para mim. Até porque tudo o que aprendo ao escrever coisas que não têm nada a ver com um livro de ficção acabam por ajudar-me quando decido fazer um romance. Separar as duas coisas é impossível.
Como influência e referência para o que escreve, livros e jornais, por exemplo, têm o mesmo peso? Ou diria que isso está reservado a uns quantos heróis da escrita?
Desde muito cedo que tenho um gosto enorme por tudo o que está relacionado com a linguagem, em qualquer forma que esta adopte. Por um lado, sempre me comportei um pouco como uma bibliotecária, ainda que a um nível relativamente doméstico. Por outro, continuo a ler as notícias em papel todos os dias, uma a duas horas cada manhã.
Alguma vez pensou em fazer alguma outra coisa?
É mais ou menos ao contrário. De vez em quando lembro-me da sorte que tenho por não ter sequer de pensar em fazer mais nada. Até porque não há muita coisa em que seja boa. Esta vida de escrita e aulas tem sido perfeita para mim.
Gilead é um local que aparece com frequência nos seus livros. É fácil, à distância, descobrir que é uma terra pequena, em que quase nada acontece. Mas nos seus romances parece que tudo acontece lá. No meio disto, qual é a verdade?
Tenho ideia que há sempre muito a acontecer em qualquer parte, em toda a parte e em todos os tempos. Na verdade, tenho a certeza que é mesmo assim porque os primeiros anos da minha vida vivi–os sempre em pequenas localidades, relativamente isoladas. O que me parece é que a definição de “acontecimento” é diferente de pessoa para pessoa. Nos meus livros não há perseguições de carros, não há nada muito barulhento nem sensacional. Mas acontecem coisas, claro.
Em “Lila”, como noutros livros que escreveu, a religião é uma presença constante, entre as personagens e à volta delas. Acontece porque é natural que assim seja, apenas isso? Ou há aqui um certo sentido de missão, de responsabilidade?
A religião é muito importante para mim e estou muito envolvida com a minha igreja. Daí que seja natural escrever com esta perspectiva de fé. Muitos hábitos religiosos são muito bonitos, até nos pensamentos – muito daquilo que alguns hoje dizem ser a religião não é em nada bonito. Fico feliz se conseguir relembrar às pessoas uma herança que muitos já partilham e respeitam. Ainda assim, a verdade simples é que apenas exploro ideias que vou guardando, só isso.
No livro há um mundo real que de vez em quando se parece mais com um mundo de uma história fantástica. Há ideias que tanto correm em trajectos paralelos como de repente se cruzam numa única linha temporal. Isto tudo exige trabalho suplementar, algum tipo de planeamento que o livro nunca poderia revelar completamente?
Faço apenas aquilo que a ficção em causa me pede que faça. É quase como se a minha vontade não tivesse voto na matéria. Dizer isto assim pode dar a ideia de que acontece tudo no meu subconsciente, sem o meu consentimento. Não é nada disso. Mas não faço planos, não tenho a intenção clara de chegar onde quer que seja, de fazer o caminho seja de que maneira for. As coisas vão acontecendo e eu vou dizendo que sim.
No centro desta história estão mulheres, como aconteceu nos livros que escreveu antes. Foi uma decisão que tomou há muito, ter sempre mulheres como protagonistas? E além das que cria presta atenção às personagens femininas que existem na ficção contemporânea?
Não diria que foi algo assim tão consciente nem me parece que tenha esse cuidado por alguma razão especial. Aliás, diria que mulheres e homens sofrem do mesmo mal, isto no que respeita à literatura: uns e outros aparecem fechados numa representação da realidade que é estreita de mais e com nomes em exagero para que a complexidade natural que têm possa crescer e desenvolver-se como merece.