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O processo penal português morreu! Está morto…
Apesar de velho de centúrias, não morreu de senilidade. Mataram-no. A golpes de adaga e de machete. Morto que está, nada podemos fazer para o salvar. Como o conhecemos e amámos, faleceu da vida presente. Desceu ao Hades. Passou pelo Lethes em direcção aos Elísios, para viver num paraíso merecido, depois de mais de uma década de estertores nestas terras lusas. Esperará agora os mil anos da lenda para se purgar de tudo quanto é terreno, e só então, bebendo daquelas águas, se esquecerá de tudo, de todo o mal que por cá lhe fizeram e de todo o mal que ele próprio causou.
Esquecer-se-á, por exemplo, de que no fim de uma longa vida se separara de facto da deusa Justiça, esposa de quem nunca se poderia apartar, tendo-se amantizado com uma das filhas de Éris, a náiade Lete, senhora da Discórdia.
E assim constatámos que, afinal, já não era pela cultura do espírito que se dominava a força. Desarmonias e de-savenças expulsaram a paz da comunidade. Como se o edifício construído por um secular povo num território determinado tivesse deixado de lhe garantir a desnecessidade da autotutela dos seus direitos, como se tivesse deixado de ser lugar de paz, segurança e justiça. Desaparecendo estas, desapareceu a confiança… a fé no próprio homem.
Sem o processo penal abraçado à justiça, dominado pelos humores de Éris, foi a própria fé do povo que desapareceu. Sem a luz da justiça, o processo definhou, putrefez-se em metástases incontroláveis de degradação orgânica e funcional.
De tudo isto sobrou apenas a tristeza de alguns dos oficiantes da verdadeira religião que é o processo, na relação do humano com a justiça, a segurança e a paz.
Mas, afinal, quem feriu de morte o nosso velho processo penal? Foram punhais, adagas e machetes, sucessivamente cravados no corpo do seu código e no seu espírito.
Uma estocada funda foi o desenfreado alargamento da admissibilidade do uso de toda a sorte de meios insidiosos e excepcionalíssimos de investigação para processos por quase todo o tipo de crimes. Aquilo que era raríssimo passou a ordinário. A lógica do direito penal do inimigo tudo justificou… até o que nada tinha que ver com nada!
Uma facada larga, a mais visível das lesões, foi o usar cirurgicamente o segredo de justiça e seu regime incompreensível para, treslendo-o ou violando-o, obter o imediato julgamento sociológico e mediático, não fora a aplicação jurisdicional do direito, a final, falhar o alvo, ou tardar demasiado para acalmar as fúrias e seu clamor mediático.
A mais violenta das machadadas foi esquecer as centenárias lições da criminologia que alertavam para o perigo de o excesso de antibiótico criminal poder vir a matar o paciente, quando o paciente é a economia. Principalmente quando o antibiótico é dado por lustres sem fim, deixando o paciente, a família e a comunidade na ânsia sobre se o paciente está condenado ou sobrevive.
No fim, amortalharam o processo nas folhas dos mesmos jornais que usaram como catanas. A sepultura foi cavada pelas rádios e televisões. Desempenhando todos os papéis, e também o de carpideiras, estiveram as redes sociais.
E nós? Nós fizemos o que pudemos!
Advogado
Escreve à sexta-feira