O grande imbróglio lusitano


Passos sem hipótese de fazer um governo forte. Uma solução fraca de esquerda ou de direita afastará ainda mais as pessoas da política, debilitando a democracia e dando espaço a interesses.


© Andre Kosters/Lusa

Se não inovar e mantiver a leitura tradicional da constituição que é sabiamente mais dúbia do que objectiva, o Presidente da República deve indigitar Passos Coelho primeiro-ministro, a fim de formar governo. Isto apesar de António Costa ter assegurado que existe uma alternativa efectiva e estável à esquerda.

Cavaco termina hoje as audiências formais e legais com os partidos parlamentares. Face ao que já disseram, o Presidente pode quebrar a tradição, mas é improvável que o faça. Só se um inevitavelmente débil governo de Passos for mesmo rejeitado na Assembleia é que é provável que um institucionalista como Cavaco Silva passe à hipótese seguinte. Viria nesse caso um governo do PS, na forma minoritária ou mesmo de coligação à esquerda com o Bloco e a CDU. Por muito que esta última solução pudesse parecer politicamente absurda seria intocável no plano da legitimidade formal.

Há ainda outra hipótese menos óbvia. Passaria por Cavaco Silva dar mais uns dias aos partidos do chamado arco da governação para se entenderem, apelando a valores superiores e patrióticos face à necessidade de estabilidade, a que repetidamente se referiu nos últimos anos. Só depois de falhado o apelo passaria à aceitação de uma solução esquerdista, exigindo, porém, garantias de cumprimento de certos compromissos internacionais, apesar de ser discutível que tenha efectivos poderes para tal. Uma atitude desse género poderia implicar uma consulta prévia ao Conselho de Estado, a fim de tomar o pulso da sociedade.

Noutro âmbito, mas ficando na pressuposta indigitação de Passos, muitos analistas têm apontado a necessidade do seu novo governo ser politicamente forte. Ora essa é uma hipótese desde já impossível, uma vez que tal executivo não tem garantias firmes de sobrevivência por parte do PS ou de alguns deputados socialistas, decididos a romper com a disciplina de voto e a correr o risco de expulsão.

Sem condição de estabilidade, o mais natural seria o novo governo de Passos ficar num patamar mais baixo do que o actual em que há poucos quadros políticos ou profissionais de craveira. Nos dias de hoje, para um executivo incorporar mais do que amanuenses partidários é preciso que tenha um horizonte temporal de tranquilidade. Sem isso dificilmente se encontra quem arrisque carreira e prestígio por uma aventura que pode acabar mal e depressa. Veja-se o que aconteceu a Vítor Bento e extrapole-se para a política. Talvez seja na Universidade que, ainda assim, Passos possa recrutar gente de calibre e que corra riscos.

Enquanto o país político se agita, o país real volta atónito a perguntar o mesmo de sempre: porque é que eles não se entendem? E com razão. Os portugueses da classe média e média alta fogem dos políticos como se tivessem peçonha. Os outros, os que lutam diariamente pela mera sobrevivência ou que estão no limiar da pobreza, nem os consideram. Pobres, abandonados, velhos e novos, no interior ou nas zonas suburbanas, há milhões de cidadãos tristes, desdentados, doentes crónicos, desempregados e iletrados mas cheios de bom senso que não querem saber se é com socialistas, sociais-democratas, liberais, fascistas, comunistas ou de extrema-esquerda que o governo se vai formar.

Querem soluções. Progresso, saúde, justiça, trabalho, pão, menos intrigas e menos negociatas. Pouco lhes importa a conversa dialéctica fiada e o passa-culpas. Quando há um milhão de pessoas sem médico de família, quando há um milhão de desempregados, quando há cantinas sociais cheias, quando os bancos abrem falência, quando os reformados são sacrificados e os jovens emigram, quando há crianças e mulheres violentadas, o cidadão comum não percebe que gente que vive de e para a política não se entenda sobre questões essenciais.

Mais de 43% deste povo já virou costas ao sistema. Um período prolongado de crise afastará ainda mais gente. E uma democracia débil que não tenha participação passa a ser meramente formal, ficando refém de lóbis e máquinas partidárias que se servem do Estado para alimentar interesses. Os líderes dos partidos e o Presidente da República estão, portanto, hoje confrontados com uma enorme responsabilidade histórica que se estende até aos candidatos à presidência que herdarão um quadro complicadíssimo.

Neste momento estamos ainda no turno de Cavaco Silva do qual se espera uma intervenção activa, racional e exigente, uma vez que o nosso regime é semipresidencialista de pendor parlamentar e não meramente parlamentar, o que pode sempre levar a soluções improváveis nesta altura. No meio deste perigoso e inédito imbróglio há que saber esperar porque, como diz o povo na sua imensa sabedoria, a procissão ainda vai no adro. 

Director da Newshold
Jornalista
Escreve à quarta-feira 

O grande imbróglio lusitano


Passos sem hipótese de fazer um governo forte. Uma solução fraca de esquerda ou de direita afastará ainda mais as pessoas da política, debilitando a democracia e dando espaço a interesses.


© Andre Kosters/Lusa

Se não inovar e mantiver a leitura tradicional da constituição que é sabiamente mais dúbia do que objectiva, o Presidente da República deve indigitar Passos Coelho primeiro-ministro, a fim de formar governo. Isto apesar de António Costa ter assegurado que existe uma alternativa efectiva e estável à esquerda.

Cavaco termina hoje as audiências formais e legais com os partidos parlamentares. Face ao que já disseram, o Presidente pode quebrar a tradição, mas é improvável que o faça. Só se um inevitavelmente débil governo de Passos for mesmo rejeitado na Assembleia é que é provável que um institucionalista como Cavaco Silva passe à hipótese seguinte. Viria nesse caso um governo do PS, na forma minoritária ou mesmo de coligação à esquerda com o Bloco e a CDU. Por muito que esta última solução pudesse parecer politicamente absurda seria intocável no plano da legitimidade formal.

Há ainda outra hipótese menos óbvia. Passaria por Cavaco Silva dar mais uns dias aos partidos do chamado arco da governação para se entenderem, apelando a valores superiores e patrióticos face à necessidade de estabilidade, a que repetidamente se referiu nos últimos anos. Só depois de falhado o apelo passaria à aceitação de uma solução esquerdista, exigindo, porém, garantias de cumprimento de certos compromissos internacionais, apesar de ser discutível que tenha efectivos poderes para tal. Uma atitude desse género poderia implicar uma consulta prévia ao Conselho de Estado, a fim de tomar o pulso da sociedade.

Noutro âmbito, mas ficando na pressuposta indigitação de Passos, muitos analistas têm apontado a necessidade do seu novo governo ser politicamente forte. Ora essa é uma hipótese desde já impossível, uma vez que tal executivo não tem garantias firmes de sobrevivência por parte do PS ou de alguns deputados socialistas, decididos a romper com a disciplina de voto e a correr o risco de expulsão.

Sem condição de estabilidade, o mais natural seria o novo governo de Passos ficar num patamar mais baixo do que o actual em que há poucos quadros políticos ou profissionais de craveira. Nos dias de hoje, para um executivo incorporar mais do que amanuenses partidários é preciso que tenha um horizonte temporal de tranquilidade. Sem isso dificilmente se encontra quem arrisque carreira e prestígio por uma aventura que pode acabar mal e depressa. Veja-se o que aconteceu a Vítor Bento e extrapole-se para a política. Talvez seja na Universidade que, ainda assim, Passos possa recrutar gente de calibre e que corra riscos.

Enquanto o país político se agita, o país real volta atónito a perguntar o mesmo de sempre: porque é que eles não se entendem? E com razão. Os portugueses da classe média e média alta fogem dos políticos como se tivessem peçonha. Os outros, os que lutam diariamente pela mera sobrevivência ou que estão no limiar da pobreza, nem os consideram. Pobres, abandonados, velhos e novos, no interior ou nas zonas suburbanas, há milhões de cidadãos tristes, desdentados, doentes crónicos, desempregados e iletrados mas cheios de bom senso que não querem saber se é com socialistas, sociais-democratas, liberais, fascistas, comunistas ou de extrema-esquerda que o governo se vai formar.

Querem soluções. Progresso, saúde, justiça, trabalho, pão, menos intrigas e menos negociatas. Pouco lhes importa a conversa dialéctica fiada e o passa-culpas. Quando há um milhão de pessoas sem médico de família, quando há um milhão de desempregados, quando há cantinas sociais cheias, quando os bancos abrem falência, quando os reformados são sacrificados e os jovens emigram, quando há crianças e mulheres violentadas, o cidadão comum não percebe que gente que vive de e para a política não se entenda sobre questões essenciais.

Mais de 43% deste povo já virou costas ao sistema. Um período prolongado de crise afastará ainda mais gente. E uma democracia débil que não tenha participação passa a ser meramente formal, ficando refém de lóbis e máquinas partidárias que se servem do Estado para alimentar interesses. Os líderes dos partidos e o Presidente da República estão, portanto, hoje confrontados com uma enorme responsabilidade histórica que se estende até aos candidatos à presidência que herdarão um quadro complicadíssimo.

Neste momento estamos ainda no turno de Cavaco Silva do qual se espera uma intervenção activa, racional e exigente, uma vez que o nosso regime é semipresidencialista de pendor parlamentar e não meramente parlamentar, o que pode sempre levar a soluções improváveis nesta altura. No meio deste perigoso e inédito imbróglio há que saber esperar porque, como diz o povo na sua imensa sabedoria, a procissão ainda vai no adro. 

Director da Newshold
Jornalista
Escreve à quarta-feira