Agora, quase 45 anos depois


Quem não é capaz de amar as contradições da própria existência, não ama verdadeiramente a vida e quem a vive.


Charlotte Ramopling numa cena do filme 45 anos

1. Vi, recentemente, "45 anos", um filme notável de Andrew Haigh.

O protagonista, irritado, verbera, a certa altura, a atitude de um amigo que – diz ele – na juventude defendia Lenine e hoje joga golfe no Algarve na companhia de banqueiros.

O filme, porém, não versa especificamente sobre o problema da coerência política.

Fala sobre a própria coerência; neste caso, sobre a (in)congruência dos sentimentos de um homem que vive um casamento sólido desde há 45 anos, matrimónio que contraiu depois de, cinco anos antes, ter literalmente perdido a namorada, com quem vivia, num acidente nas neves das montanhas suíças.

O seu problema consiste em demonstrar à actual mulher que o facto de por ela se ter enamorado e com ela ter vivido bem casado 45 anos não é contraditório com a circunstância de ter estado apaixonado por essa outra namorada e de, porventura, se ela não tivesse morrido, a ter desposado.

Os seus sentimentos actuais foram sendo moldados no contexto do matrimónio que vive.

Os sentimentos passados – que ele não pode renegar – resultaram da situação amorosa que então viveu e das perspetivas que dela decorriam.

O referido homem parece não considerar incoerente a coexistência dos sentimentos pela mulher que desposara com a pretérita afeição pela primeira namorada.

Recorda-a, agora, inevitavelmente com alguma ternura, em virtude de o corpo dela ter sido por fim encontrado e resgatado da neve.

2. A questão, da coerência, atormenta hoje e justificadamente, muita gente.

Como se conseguirá, sem renegar posições de sempre, adequar estas às circunstâncias e exigências do tempo presente?

No fundo, a questão reside em se rejeitar a incoerência, quando se impõe adoptar uma atitude capaz de responder, mesmo que parcelarmente apenas, mas com eficácia, a um problema actual concreto, sem prescindir, simultaneamente, de uma visão crítica e mais integrada das causas que o motivam.

A coerência de atitudes – como as dos sentimentos – releva, verdadeiramente, da disposição para prosseguir, ou não, um caminho que, com mais ou menos curvas, continua o mesmo, ainda que, para o poder prosseguir, possa ser necessário retemperar forças.

Aquilo que se afigura contraditório, pode constituir tão só um trilho mais apertado para atingir, mesmo que mais demoradamente, a meta com que sempre se sonhou.

Dizia-me, em tempos, um amigo – infelizmente já falecido – que quem não é capaz de amar as contradições da própria existência, não ama verdadeiramente a vida e quem a vive: as mulheres e os homens coetâneos dos sonhadores e dos sonhos que os envolvem.

3. Insistir em manter um sonho intacto e, para tanto, descurar o outro, nosso contemporâneo, e que sofre, pode contribuir para anular, agora e no futuro, a força transformadora do próprio sonho.

A energia de um sonho e a utopia que ele alimenta desenvolvem-se sempre que mais e mais pessoas conseguem comungar efetivamente de todos os benefícios morais e materiais neles gerados.

Ninguém gosta de chocolate se dele não tiver provado: disseram-me um dia.

Permitir que aqueles que nunca o provaram o possam fazer, devolvendo – por pouco que seja – o prazer do seu gosto aos que já o experimentaram e guardam, por isso, a sua deliciosa memória é inegavelmente a melhor maneira de a todos envolver no sonho que a doçura do seu sabor propicia.

4. «45 anos», o filme que Charlotte Rampling e Tom Courtenay magnificamente interpretam, é uma obra por todas as razões atual, que importa ver, rever e meditar. 

Jurista
Escreve à terça-feira

Agora, quase 45 anos depois


Quem não é capaz de amar as contradições da própria existência, não ama verdadeiramente a vida e quem a vive.


Charlotte Ramopling numa cena do filme 45 anos

1. Vi, recentemente, "45 anos", um filme notável de Andrew Haigh.

O protagonista, irritado, verbera, a certa altura, a atitude de um amigo que – diz ele – na juventude defendia Lenine e hoje joga golfe no Algarve na companhia de banqueiros.

O filme, porém, não versa especificamente sobre o problema da coerência política.

Fala sobre a própria coerência; neste caso, sobre a (in)congruência dos sentimentos de um homem que vive um casamento sólido desde há 45 anos, matrimónio que contraiu depois de, cinco anos antes, ter literalmente perdido a namorada, com quem vivia, num acidente nas neves das montanhas suíças.

O seu problema consiste em demonstrar à actual mulher que o facto de por ela se ter enamorado e com ela ter vivido bem casado 45 anos não é contraditório com a circunstância de ter estado apaixonado por essa outra namorada e de, porventura, se ela não tivesse morrido, a ter desposado.

Os seus sentimentos actuais foram sendo moldados no contexto do matrimónio que vive.

Os sentimentos passados – que ele não pode renegar – resultaram da situação amorosa que então viveu e das perspetivas que dela decorriam.

O referido homem parece não considerar incoerente a coexistência dos sentimentos pela mulher que desposara com a pretérita afeição pela primeira namorada.

Recorda-a, agora, inevitavelmente com alguma ternura, em virtude de o corpo dela ter sido por fim encontrado e resgatado da neve.

2. A questão, da coerência, atormenta hoje e justificadamente, muita gente.

Como se conseguirá, sem renegar posições de sempre, adequar estas às circunstâncias e exigências do tempo presente?

No fundo, a questão reside em se rejeitar a incoerência, quando se impõe adoptar uma atitude capaz de responder, mesmo que parcelarmente apenas, mas com eficácia, a um problema actual concreto, sem prescindir, simultaneamente, de uma visão crítica e mais integrada das causas que o motivam.

A coerência de atitudes – como as dos sentimentos – releva, verdadeiramente, da disposição para prosseguir, ou não, um caminho que, com mais ou menos curvas, continua o mesmo, ainda que, para o poder prosseguir, possa ser necessário retemperar forças.

Aquilo que se afigura contraditório, pode constituir tão só um trilho mais apertado para atingir, mesmo que mais demoradamente, a meta com que sempre se sonhou.

Dizia-me, em tempos, um amigo – infelizmente já falecido – que quem não é capaz de amar as contradições da própria existência, não ama verdadeiramente a vida e quem a vive: as mulheres e os homens coetâneos dos sonhadores e dos sonhos que os envolvem.

3. Insistir em manter um sonho intacto e, para tanto, descurar o outro, nosso contemporâneo, e que sofre, pode contribuir para anular, agora e no futuro, a força transformadora do próprio sonho.

A energia de um sonho e a utopia que ele alimenta desenvolvem-se sempre que mais e mais pessoas conseguem comungar efetivamente de todos os benefícios morais e materiais neles gerados.

Ninguém gosta de chocolate se dele não tiver provado: disseram-me um dia.

Permitir que aqueles que nunca o provaram o possam fazer, devolvendo – por pouco que seja – o prazer do seu gosto aos que já o experimentaram e guardam, por isso, a sua deliciosa memória é inegavelmente a melhor maneira de a todos envolver no sonho que a doçura do seu sabor propicia.

4. «45 anos», o filme que Charlotte Rampling e Tom Courtenay magnificamente interpretam, é uma obra por todas as razões atual, que importa ver, rever e meditar. 

Jurista
Escreve à terça-feira