“Sempre foi para mim uma personagem atraente e misteriosa”


O percurso do militar e do político que é considerado o homem mais importante do 25 de Abril.


Uma pesquisa exaustiva, um trabalho minucioso e um resultado surpreendente. O autor, Carlos Ademar, explica isso num livro que marca a história portuguesa contemporânea.

Porquê Vítor Alves? Marcou-o de alguma forma?

Sempre foi para mim uma personagem atraente e misteriosa. Ainda que à data do 25 de Abril eu fosse um rapaz de consciência política nula, as dinâmicas que então foram geradas na sociedade portuguesa levaram-me a interessar-me pelo que ia acontecendo no país. Foi o suficiente para ir registando alguns factos, algumas personalidades, e reflectir ocasionalmente sobre eles. De entre todas as personalidades que emergiram, Vítor Alves foi o que mais me marcou, apenas porque sim (dentro da tal inconsciência). Talvez a sua simpatia serena em tempos tão conturbados me tivesse atraído. Parti para o trabalho com a convicção de que ele fora um homem importante em todo o processo revolucionário, mas não conseguia explicar porquê. Concluído o trabalho, tenho agora a certeza de que Vítor Alves foi um dos principais artífices da organização e politização do movimento de oficiais que viria a tomar o nome de Movimento das Forças Armadas.

Conheceu-o alguma vez?

Tive o privilégio de o conhecer e com ele conversar cerca de duas horas. Foi em sua casa, em Oeiras, e já estava bastante doente. Aí me falou da sua tese do curso do Estado-Maior, que desde logo me interessou e viria a ser peça importante nesta sua biografia, porque atesta o seu pensamento relativamente à vida portuguesa e ao problema ultramarino, um ano antes do 25 de Abril. Explica a sua adesão a um movimento de contestação militar por alegadas razões corporativas, mas que gradualmente passa a ter objectivos políticos, curiosamente, ou talvez não, já desenhados nesse trabalho académico. Infelizmente só estive com ele essa vez; morreria cerca de três meses depois, em Janeiro de 2011. 

Qual foi o plano para o livro?
A ideia foi preencher uma lacuna que existia na bibliografia deste período, lacuna que podemos até considerar que arrastava alguma injustiça, porque os principais responsáveis pela instauração da democracia em Portugal já haviam sido biografados. Na verdade, este homem era dotado de uma personalidade marcada por uma grande discrição, reforçada, provavelmente, pelos anos que passou nos serviços de informações militares, onde fez parte da sua carreira. Se juntarmos a isso uma certa dificuldade em falar na primeira pessoa, porque preferia fazê-lo em nome do colectivo a que pertencia… “Eu nunca digo eu!”
 

Quais foram as maiores dificuldades?

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Houve várias dificuldades, desde logo o enorme volume de informação que foi necessário confirmar, compilar e transformar em texto. Mas isso era, digamos, previsível, tendo em conta o trabalho em que me envolvera. Das diversas dificuldades que fui encontrando ao longo do percurso, destaco duas: poucas referências bibliográficas a Vítor Alves nas obras sobre este período, se comparado com outros protagonistas do 25 de Abril, e o facto de o seu espólio não estar ainda trabalhado em termos arquivísticos, pelo menos em grande parte. Vítor Alves tem um espólio enorme, cuja quase totalidade está à guarda do Centro de Documentação 25 de Abril, e uma pequena parte a cargo da família. A organização é um tanto caótica, o que dificultou bastante a pesquisa. Quanto à raridade das referências a Vítor Alves na bibliografia, é uma evidência, surgindo mais comummente associado a outros camaradas de armas, o que para o biógrafo é um tanto frustrante. 

Falou com familiares? Amigos? Colegas?

A falta de referências bibliográficas a Vítor Alves levaram-me a ter de efectuar muitas mais entrevistas do que havia planeado. Foram entrevistadas para cima de três dezenas de pessoas, entre familiares, camaradas, amigos, colaboradores, acabando por se revelar estas entrevistas, em alguns casos, instrumentos preciosos não só para aclarar certas matérias, mas para fazer emergir aspectos inéditos que só quem os viveu, como foi o caso de alguns dos entrevistadores, deles poderia dar fé. 

Que descobertas surpreendentes encontrou, se encontrou, na pesquisa?

Desde logo, o programa do MFA anotado pelo general Spínola. Depois descobri um processo que foi instaurado a Vítor Alves (ele tinha mais processos e não sabia) pelo famoso inspector Óscar Cardoso, da PIDE, por ter tido a coragem de denunciar ao seu comandante de batalhão, via rádio, o assassínio pela polícia política de dois nativos que subitamente desapareceram da aldeia junto do aquartelamento de N’Riquinha, nas Terras do Fim do Mundo, em Angola, em 1968, que ele comandava. A denúncia não visou apenas o excessivo poder da PIDE, mas também quem lho conferia, terminando com o alerta de que, com atitudes como aquela, o trabalho de pacificação que encetava junto das populações ficava altamente comprometido. Em suma, descobri um patriota, um humanista corajoso, um homem–ponte capaz de reunir o cimento necessário para juntar o que fosse preciso para que o programa do MFA, a menina dos seus olhos, emergisse ao longo do processo conturbado que se seguiu ao 25 de Abril e regressasse ao seu espírito original, na leitura dos seus criadores. 

Alguma história, revelação, que nunca tivesse sido escrita?

Algumas sim, mas apenas no que toca à importância de Vítor Alves na instauração e consolidação da democracia em Portugal. Ao lermos a tese de Vítor Alves que elaborou para concluir o curso do Estado-Maior, datada de Abril de 1973, percebemos as razões pelas quais aderiu ao movimento dos oficiais das Forças Armadas numa altura tão precoce, tendo em conta a sua patente de major, ou seja, numa altura em que não era prejudicado pelos famosos decretos de 1973 que estão na origem do movimento. Este estudo, intitulado “As Forças Armadas – Grupo de Pressão?” (cujas conclusões estão insertas na biografia) dá conta do sentir de Vítor Alves, não só face ao problema ultramarino, mas também aos reflexos que ele tinha no atraso significativo de Portugal face aos restantes povos da Europa ocidental. Vamos encontrar ali preocupações, ideias e até expressões que, mais tarde, iriam constar nos principais documentos do MFA. Encontramos ali a ameaça bem clara de que algo como o 25 de Abril poderia surgir se nada de significativo fosse feito pelo governo. Depois, na sua qualidade de “pai adoptivo” do Programa do MFA, quando a legitimidade democrática começou a perder terreno para a chamada legitimidade revolucionária, Vítor Alves foi o primeiro militar do futuro Grupo dos Nove a incompatibilizar-se com o então líder do grupo defensor da legitimidade revolucionária, Vasco Gonçalves, custando-lhe isso o afastamento do IV Governo Provisório e um certo apagamento na dinâmica política nacional nos meses seguintes. Curiosamente, este afastamento coincidiu com uma viragem à esquerda e um extremar de posições que só a publicação do Documento dos Nove conseguiu denunciar e a Assembleia do MFA de Tancos, de 5 de Setembro de 1975, conseguiu inverter, inversão que apenas o 25 de Novembro consolidou.

O que sobressai mais, o homem, o militar ou o político?

Pergunta difícil. Mas são clara e naturalmente as características do homem acima indicadas que moldam o militar e o político, o que não significa que estas actividades, que exerceu profissionalmente, não tenham também elas moldado o homem – o militar mais que o político, por força da vasta experiência de guerra em Angola. Talvez falte algo ao título da biografia: “o cidadão”. Vítor Alves nunca abdicou do seu papel de cidadão na sociedade. Desde finais dos anos 80, quando desistiu das candidaturas políticas pelo PRD (nunca eleito), usou o seu prestígio para formar e difundir organizações de defesa dos direitos humanos e da cidadania, organizações que acabaram por ter um papel interessante na melhoria de aspectos pontuais que mexiam com o dia-a-dia das populações. A Civitas e a Cidadãos do Mundo são bons exemplos deste trabalho pouco conhecido, onde procurou incutir nas populações o papel de que habitualmente abdicam, o de cidadãos. Nos últimos anos de vida foi um democrata descontente com a democracia portuguesa por entender que esta se esgota em cada acto eleitoral. Acusava as elites políticas de fomentarem o afastamento entre eleitos e eleitores, por nada fazerem para o reduzir, bem pelo contrário. Penso que morreu com esta mágoa.