João Lobo Antunes. A vida extraordinária do cirurgião que aconselhou Presidentes e ministros

João Lobo Antunes. A vida extraordinária do cirurgião que aconselhou Presidentes e ministros


O neurocirurgião acaba de ser distinguido com o Prémio Nacional de Saúde.


O neurocirurgião acaba de ser distinguido com o Prémio Nacional de Saúde e edita esta semana “Ouvir Com Outros Olhos”, uma colectânea de textos e discursos. Ainda não são as suas memórias, mas está a trabalhar nelas com “vertigem”. Quem é Lobo Antunes?

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Dezasseis de Janeiro de 1960. Foi há tanto tempo que não existiam sequer cassetes para registar o momento. Ou teleponto, para tornar tudo mais fácil. O trio ensaiou de manhã e, ao final do dia, entrou em cena com a missão de entreter a miudagem durante duas horas até ao noticiário da noite. Quem? Júlio Isidro, Lídia Franco e João Lobo Antunes, alunos de liceu seleccionados para apresentar o programa “Juvenil” na RTP.

Júlio Isidro não esquece aquele que foi o seu dia de estreia na apresentação televisiva nem a improvável companhia, tendo em conta o caminho seguido pelos três. Mas na altura também ele queria ser engenheiro aeronáutico e o “Juvenil” era só um passatempo.

“Acabei por ficar em terra”, sorri. Tinham todos entrado por casting, mas Lobo Antunes já tinha alguma experiência: antes de Júlio Isidro se juntar ao programa, estreara–se com a actriz Irene Cruz. Seguir-se-iam companheiros de antena como Maria João Avillez ou o pediatra Paulo Ramalho. “Lembro-me de, quando íamos para casa de carrinha, João Lobo Antunes já falava de ir para Medicina, afinal era tradição na família”, conta o apresentador.

Era mesmo, e no 6.º ano [hoje 10.º] no Liceu Camões, que Júlio Isidro, um ano mais novo, também frequentava, João Lobo Antunes já estava orientado para seguir as pisadas do pai, o neurologista João Alfredo de Figueiredo Lobo Antunes. Outra grande influência era o tio-avô, Pedro Almeida Lima. Ambos foram colaboradores próximos de Egas Moniz, figura que ao longo da vida sempre marcou o neurologista.

O mais bonito

Na altura, pico da adolescência, Lobo Antunes era já um aluno excepcional, lembra Júlio Isidro.
E derretia corações. “Era o mais bonito de nós todos, com olhos azuis e cabelos loiros. Além disso, era educado e sóbrio.”

Assim seria toda a vida. Foi a medicina que lhe deu a fama, mas o lado de sedutor nas palavras e pensamento acabou por se tornar uma das suas imagens de marca. Homem de muitas paixões, casou três vezes e tem quatro filhas, três do primeiro casamento, com a médica Ana Maria Plantier Couvreur de Oliveira, e uma quarta do segundo casamento, com Maria do Espírito Santo Silva Salgado, irmã mais velha de Ricardo Salgado. Homem de “inteligência superior”, como o descrevem os amigos, uma certa preocupação pela aparência e gosto pelo magistério de influência marcaram sempre o seu percurso. “Gostava de fazer parte do clã Salgado, de passar as férias em família”, conta um amigo.

Sampaio magoado

Um dos momentos públicos mais contraditórios acontece em 2005, quando apoia a primeira candidatura de Cavaco Silva à Presidência da República, cinco anos depois de ser mandatário de Jorge Sampaio.

Consta que, quando o disse a Sampaio, o amigo de longa data terá ficado magoado durante uns tempos. Questionado na altura pela imprensa sobre os motivos da sua escolha, declarou não ter mudado. “Apenas exerci a minha cidadania de uma forma na altura e de outra diferente agora”, disse, sublinhando que “a escolha de um candidato presidencial é a escolha de um cidadão livre.” Voltaria a ser mandatário de Cavaco em 2011.

 Próximo de uma ala mais à direita, Lobo Antunes sempre se disse independente. Mesmo em matéria de fé. Só recentemente, depois de se ter afastado no Verão da prática clínica por motivos de doença, se tem aproximado da igreja e esteve com o cardeal-patriarca, D. Manuel Clemente. Em jovem chegou a integrar a Juventude Universitária Católica, tornando-se, com o tempo, agnóstico.

A vontade além da inteligência

Fascinado pela inteligência, com o tempo percebeu o papel decisivo da vontade, do fazer, contou em 2001 numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro. Ainda assim, já em jovem era obsessivo no estudo e na escrita. Na casa onde cresceu, em Benfica, fechava-se no quarto dias seguidos. “Começava às nove com o sino da igreja, acabava à uma com o sino da igreja, recomeçava às três com as três badaladas, acabava às oito com as oito badaladas, recomeçava às nove a acabava às onze. Dia após dia após dia. Sábado e domingo descansava. Era muito obsessivo.” O que lhe trouxe resultados, mas também alguns ressentimentos.

Foi o primeiro a ter 20 na cadeira de Fisiologia na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a que se seguiram outros tantos 20. “Perdi, perdi muito, e nunca recuperei. Não sabia fazer mais nada. Gostaria de tocar piano. Dava uma dúzia dos meus vintes para ter dez em piano.”

© Rodrigo Cabrita

Trabalho austero

A busca pela perfeição acompanhá-lo-ia toda a vida. “Sempre foi um workaólico”, conta a actual mulher, a pediatra Maria do Céu Machado. “É uma obsessão saudável, com um lado humano, mas gosta de ser perfeito no que faz. E quando acha que não é perfeito, não faz.”

 Numa entrevista publicada na última edição do “Jornal de Letras”, a propósito da colectânea de textos que vai lançar esta semana, com o título “Ouvir Com Outros Olhos”, diz estar a escrever as suas memórias com “vertigem”, até “pela ameaça de mortalidade” que a sua vida atravessa aos 71 anos. E volta a insistir que foi o trabalho que o levou ao sucesso. “Foi graças a uma total dedicação ao trabalho e a um programa muito austero ao serviço das pessoas e das ideias.”

Tanto que chegou a pensar em ir para cardiologia e teve receio de nunca vir a ser um grande cirurgião por não ter umas mãos muito habilidosas, conta na mesma entrevista. Usa o bisturi mais como pincel do que como chave de fendas. Maria do Céu Machado confirma ainda hoje a sua falta de jeito para as coisas da casa. “É um cirurgião que não é capaz de pregar um prego.”

O pai só não emendava a Bíblia

O rigor e o método terão sido heranças do pai, a quem sucedeu na Faculdade de Medicina de Lisboa e no Hospital de Santa Maria ao dirigir o serviço de Neurocirurgia. Rigor tanto na técnica como na escrita, a que nunca se dedicou totalmente, como o irmão António, mas que foi sempre uma actividade paralela.

 Uma das ideias em que se revê pertence a Tchekhov, di-lo no prefácio do livro em que o escritor José Cardoso Pires relata a sua estranha “morte branca” em 1995, dias em que, depois de um AVC, não sabia quem era, não conseguia escrever ou falar – um quadro clínico considerado irreversível e do qual acabou por recuperar, vivendo mais três anos. “Mais interessante para mim é a experiência de Tchekov, médico, doente e escritor que dizia ser a medicina a sua mulher legítima, e a literatura a sua amante; quando de uma delas se cansava, passava a noite com a outra. Reconhecia, no entanto, que se apenas pudesse contar com a sua imaginação para construir a sua obra literária, pouco teria para escrever”, lê-se em “De Profundis, Valsa Lenta”.

 O pai vivia para a medicina, mas era apaixonado pela escrita. “Foi um grande professor e muito rigoroso, eles (os irmãos Lobo Antunes) acham que até demais. Costumam dizer que só não emendava a Bíblia – os livros estavam sempre cheios de anotações e correcções”, conta Maria do Céu Machado. João tem uma forte ligação a António. Depois de anos desencontrados, há dez voltaram a aproximar-se quando o escritor foi operado a um cancro no intestino, na altura por um dos seus amigos mais próximos em Santa Maria, Henrique Bicha Castelo. Dos seis irmãos, uma família unida, três foram para a medicina. Há dois anos perderam Pedro, arquitecto.

Nunca gostou de small talk

O círculo de amigos de Lobo Antunes não é grande e mesmo os mais próximos admitem que nem sempre é um sujeito fácil, com alguns traços de altivez e arrogância.

O médico de calças de xadrez de palhaço snobe, terá descrito Cardoso Pires. “É sobretudo timidez, mas nunca gostou daquilo da ‘small talk’. E é vaidoso, sim, mas um vaidoso ingénuo, como são muitos homens”, diz Maria do Céu Machado. Apesar dessa pose elitista, nunca recusa tempo a um amigo, conta um colega próximo. Nem tempo aos doentes, junto dos quais sempre preferiu o anonimato. Para ele, diz numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro em 2012, o elitismo é defensável mas partindo do direito de todos à igualdade – daí considerar central a aposta na educação como pilar da justiça.

A vida com entusiasmo Jubilado em Junho de 2014, na véspera de fazer 70 anos, Lobo Antunes dedicou-se à escrita e assumiu o cargo do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.

Há anos que não entra no jogo do comentário público, sobretudo depois de ter sido nomeado em 2006 por Cavaco Silva para o Conselho de Estado. Em Fevereiro foi uma das personalidades a dar a cara numa campanha contra os tabus em torno do cancro, defendendo a necessidade de manter a esperança. Na entrevista ao “Jornal de Letras” diz que tem conseguido enfrentar a sua doença com relativo optimismo.

Maria do Céu Machado vê no companheiro de há 14 anos um homem que tem vivido com entusiasmo, um espírito curioso e sempre aberto à novidade. Há cinco anos, numa viagem pelo Vietname, andaram à descoberta de bicicleta. Mas é sobretudo nos livros e nas pessoas que Lobo Antunes mais encontra sentido.

Têm três divisões cheias de livros e a biblioteca nunca ficará completa. “Sempre que lê uma crítica que acha interessante, pede o livro. E quando recebe uma encomenda, não consegue fazer nada antes de abrir os livros.” A memória é um dos seus talentos. “Lê muito e depressa mas lembra-se de tudo, do sítio exacto onde leu qualquer coisa para fazer uma citação”, diz Maria do Céu Machado.

Sobre a sua memória, Lobo Antunes tem, contudo, uma visão peculiar. Numa outra conversa com Anabela Mota Ribeiro, em 2001, dizia lembrar-se em particular dos momentos em que não foi fiel a si próprio. E falava do peso que tem em si a admoestação da consciência, como o grilo do Pinóquio, conto que o marca na infância. “Na realidade somos todos membros de uma tribo de narigudos virtuais condenados à violência perpétua da memória”, declara então. Além dos livros, adora música. E é um sportinguista ferrenho, dedicado também aos oito netos.

De Benfica para os EUA

O Prémio Nacional de Saúde era a última distinção que lhe faltava, depois de já ter sido agraciado com o Prémio Pessoa em 1996 e com a Medalha de Ouro de Mérito do Ministério da Saúde em 2003. Tem ainda a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique (2004) e a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago de Espada (2014). O júri distinguiu-o na última semana pela sua “notabilíssima e duradoura contribuição para o desenvolvimento da ciência médica e da neurocirurgia em Portugal e pelo contributo para o prestígio internacional do sistema de saúde português”.

Depois de concluir o curso de Medicina em 1968, fez formação na Universidade Columbia nos EUA, onde viveu de 1971 a 1984 – experiência decisiva no aperfeiçoamento médico, mas também na sua construção como cidadão. Ao ponto de a invocar quase sempre e de os amigos brincarem com a devoção à América.

Quando regressa ao Portugal, já pós-25 de Abril, diz ter ficado surpreendido com o atraso nos meios e o desperdício no sistema de saúde, bem como com o conservadorismo na faculdade. Dedicou–se a Santa Maria, onde trabalhou mais de 30 anos, e às aulas. Mesmo sendo a cadeira de Neurocirurgia opcional, sempre teve muitos alunos e dedicava-lhes todo o tempo, até nos intervalos. Deixou marca na casa e na história ao fazer o primeiro implante de um olho num invisual a nível mundial, em 1983.

 Em Maio, quando um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos concluiu que Santa Maria era dominada por interesses, dos partidos à maçonaria e Opus Dei, foi possivelmente das últimas vezes em que se envolveu nas quezílias internas do hospital.

Na altura, a administração de Carlos Martins responsabilizou a comissão de ética do hospital, então presidida por Lobo Antunes, por ter aprovado a metodologia do estudo, assente em entrevistas e inquéritos anónimos. Numa carta a que o i teve acesso, o neurocirurgião escreve a Carlos Martins “que só alguém sem um pingo de decência seria capaz de fazer algo que afectasse o prestígio da minha instituição”.

Mineiro de recordações

Longe das luzes mediáticas, nunca parou. Consta que nos últimos anos foi próximo de Paulo Macedo e um dos seus conselheiros na análise do sector. Também terá sido ele a indicar nomes como Leonor Parreira para o cargo de secretária de Estado da Ciência ou Jorge Soares para o Programa Gulbenkian Inovar na Saúde.

Escrever, no sentido de redescoberta, tornou-se contudo o seu principal objectivo. “Quando cheguei aos 70 anos, perguntei a mim próprio o que iria fazer, agora que não tinha de ir todas as manhãs para o Hospital de Santa Maria”, conta ao “Jornal de Letras”. “Decidi que ia entreter-me com a minha inteligência. Dito assim, isto pode parecer um pouco pretensioso, mas pensei que iria ser como um mineiro a escavar recordações.”

A ideia é completar as memórias conseguindo responder à pergunta de como se fez “cirurgião do cérebro”, o que decerto terá muito mais nuances. Como de ser médico, na sua acepção, supor uma sensibilidade para a “humanidade ferida” no doente. Na entrevista de 2001 a Anabela Mota Ribeiro, dizia ser das pessoas mais benevolentes que conheceu. “Não é a mais benevolente”, sorri um colega, mas é um homem bom.

“De amores e ódios.” Um homem exemplar na técnica mas ao mesmo tempo, e mais raro, um “homem do espírito”, resume Júlio Isidro, que no jantar dos 50 anos de carreira fez questão que Lobo Antunes se sentasse na sua mesa.