Os governos da Croácia e da Hungria têm um arranjo para contornar os muros que Viktor Órban ergueu em poucos meses nas suas fronteiras para travar as entradas de refugiados em território húngaro. O primeiro, com a Sérvia, foi concluído há precisamente um mês, tem 175 quilómetros de comprimento e não dá qualquer hipótese aos que fogem da guerra e que querem usar a rota mais rápida para chegar à Alemanha. O segundo acabou de ser concluído e é menos comprido, muito graças ao rio Drava, a barreira natural que separa a Hungria da Croácia em quase toda a fronteira. Nas pequenas faixas onde a separação foi marcada em terra há uma nova barreira de arame farpado húngara para impedir entradas ilegais, foi terminada há poucos dias. Mas porque a Croácia diz já não ter capacidade para acolher mais gente, continuando a acusar a Sérvia de inundar o seu país de humanos, as milhares de pessoas que entram diariamente pela cidade sérvia de Šid, uma das passagens oficiais para a UE para os que fogem do Médio Oriente e África, são metidas em autocarros e comboios para atravessarem a Hungria com escolta policial até à Áustria.
Abdul Farsi tem 18 anos e está na estação de Tovarnik com centenas de pessoas à espera que chegue mais gente para o comboio partir. Os autocarros vêm daqui perto, da aldeia de Opatovac, onde as autoridades montaram um campo de refugiados num terreno da petrolífera INA que é o único ponto de passagem na Croácia para estas pessoas. Quando passam a fronteira de Šid a pé, a polícia croata põe as famílias em autocarros, leva-as para Opatovac, onde recebem roupa, comida e apoio médico, volta a metê-las em autocarros e deixa-as aqui, na estação de Tovarnik. Cada autocarro transporta 75 pessoas e cada comboio só parte para a Hungria quando está cheio, leva 1700 pessoas. Daí passarmos várias horas na estação até que cheguem mais de 20 autocarros. Os refugiados ficam dentro do comboio, os jornalistas — a equipa do i, um fotógrafo dinamarquês e uma equipa da televisão malaia — fora, não podem aproximar-se.
Dentro do comboio, homens e mulheres fumam cigarros, crianças brincam com as névoas que lhes saem das bocas para os vidros, mães exaustas tentam descansar. Muitos põem as cabeças fora das janelas para gritarem por mais pão, maçãs e bananas, doces, mais pani, água. É tanto o tempo de espera que a impaciência cresce e a dada altura os que estavam dentro do comboio já estão fora, os jornalistas que estavam proibidos de se aproximar já estão sentados nos degraus das carruagens a conversar. Encorajado pelos primeiros que saem, Abdul desce até aos carris e vem pedir uma fotografia comigo. Quando o obturador do telemóvel dispara, levanta os dedos em sinal de vitória para todos os que nos olham de dentro de comboio. É o herói, tirou uma foto com a jornalista. Brinco que primeiro devia apresentar-se. “Sou o Abdul Farsi e vim do Iraque”, diz a estender-me a mão. Um pai passa por nós com o filho pequeno pela mão, são da Síria.
O repórter malaio pega na criança ao colo para falar para a câmara, a estranheza do pai visível. Karoljna, a voluntária da Cruz Vermelha Croata, faz sucesso entre os rapazes no comboio e explica-nos orgulhosa que aqui tudo é de graça. “Muitos chegam a Opatovac e já não têm dinheiro. Não vou dizer que é a Sérvia mas outros países cobram-lhes tudo e aqui é tudo de graça. Quando entram por Šid os autocarros são gratuitos, para aqui também e o comboio para a Hungria também. Às vezes chegam e vão tirar dinheiro do bolso e nós dizemos: ‘Guardem o dinheiro, aqui não pagam nada’.” Alguém grita em árabe do comboio, querem perceber para onde vão. Tento explicar que para a Hungria mas que não vão ficar lá, que nos foi garantido que só vão atravessar o país em direcção a Norte, até à Alemanha. Suspiram de alívio ao ouvirem Germany. É uma das poucas palavras que os que não falam inglês reconhecem. Como a polícia croata só sabe uma única palavra em árabe: ‘Yalla’, ‘siga’. Aqui não vão ficar.
Esta reportagem foi feita no âmbito do projecto “Aquele Outro Mundo que é o Mundo”, promovido pela ACEP, CEsA, seisXX e Coolpolitics, com o apoio do Instituto Camões e da Fundação Gulbenkian