Eduardo Barroso. “Como ministro durava dois dias”

Eduardo Barroso. “Como ministro durava dois dias”


Segunda parte da entrevista de Eduardo Barroso.


Tem noção de porque é que as pessoas mudaram?
Tenho dois filhos… Fiquei de boca aberta! Pessoas que vivem comigo!
Os seus filhos não votaram PS?
Não lhe vou dizer isso. Mas… foi uma surpresa total. 
Quando vai operar tem de pôr todas essas questões de parte?
Ainda ontem um doente me dizia: “Sr. Dr., eu sou do Benfica. Veja lá se me trata bem”. Sabe o que digo? “Ó Sr. António, nesta sala de operações nas próximas duas horas somos todos do Benfica”. Aprendi essa história com o atentado do Reagan. Conhece essa história?
Não.
O Reagan leva o tiro e vai ser operado. E em vez de virem aqueles tipos importantes que já se ofereciam para o vir operar, ele pergunta, “Quem é que está de serviço?” Era um cirurgião jovem. “Então é você que vai operar”. Ele ficou em pânico. Vai ter com o Presidente e faz-lhe aquelas perguntas “Sr. Presidente, dá autorização?”, essas coisas, que ele estava consciente. O Reagan diz “Você é democrata ou republicano?”. E ele responde “Sr. Presidente, hoje neste hospital somos todos republicanos”. É uma história espantosa. Quando o Reagan foi pedir desculpa por esta pergunta absurda, o cirurgião levantou-se e disse “Já agora fica a saber que nesse dia não havia um único médico republicano de serviço!” Passei a aplicar aquilo. Não sou militante de nada, mas toda a gente me conota com a área política do Partido Socialista.

Por falar nisso, como membro do clã Soares, como olha para a situação política? 
Não há clã Soares, acabem com isso que eu sou Barroso e Garcia da Silva. Ontem o meu primo João esteve lá em casa, e a falar entusiasmado mas a minha opinião não é a mesma. Acho que o Costa foi uma desilusão total e a única forma de ele sobreviver é fazer um governo de esquerda. Ou ele faz este governo ou vai trabalhar para advocacia, não tem solução nenhuma.
Porque diz que foi uma desilusão total?
Porque há seis meses isto estava ganho! Como foi possível perder? A campanha foi uma tragédia total. Ainda não digeri bem isso. Em relação ao SNS tenho muito medo que a política da coligação o levasse à destruição. Eu até costumo brincar a dizer que em relação ao fígado e ao pâncreas, quem tem dinheiro e tem seguros e vai para o privado é pior tratado que um pobrezinho… Esse é o meu único gozo. Mas eles [coligação] estão a proteger os hospitais privados. E atenção que isto não é uma guerra, até porque também faço privada. Não a que fazia há dez anos, em que era praticamente o líder da privada em número de operações – e isso era recompensador, devo dizer…
Em termos financeiros?
Nem me fale disso. Quando resolvi vir para aqui tinha uma grande ligação ao Grupo Mello, porque fui director do Amadora-Sintra e fui abrir a parte cirúrgica do Hospital CUF Descobertas. Não imagina o que eu ganhava…
Isso permitia-lhe o quê? 
Vivia-se muito bem – aquilo era um exagero. Quando vim para aqui, o Luís Filipe Pereira telefonou-me a dizer: “Achamos que deve ser o senhor a substituir o seu chefe, mas há uma condição: tem de deixar o Amadora Sintra”. Isso implicou deixar um hospital onde ganhava muito mais, onde tinha prémios ao fim do ano, e me permitiam fazer duas manhãs na CUF Descobertas, o que representava na altura vinte e tal mil euros por mês. Reuni a minha mulher e o meu filho – o outro já tinha saído de casa – e disse “Meninos, passa-se isto”. A minha mulher fica sempre furiosa de eu contar esta história, mas enfim… O meu filho mais novo perguntou: “Pai, tenho de deixar o carro que me ofereceste?”. “Não representa nada disso. Representa fazermos outro tipo de vida”.

Mas não lhe passou pela cabeça recusar?
Tinha a obrigação de pagar isto ao país. Estive em Cambridge, pagaram-me os estudos. Senti um dever. Quando vim para aqui faziam-se três ou quatro transplantes por ano, agora fazemos 500 cirurgias de fígado. Podia estar reformado amanhã e ter o mesmo nível de vida. Mas não estou. Esse passo foi decisivo e sem ele eu não tinha feito esta obra. O futuro do nosso centro está assegurado e isso é exemplar. Posso ter aqui um enfarte à vossa frente e isto está assegurado.
Já tem um discípulo? 
Tenho vários…
E algum predilecto?
Nunca responderia a essa pergunta. Esta é uma área muito difícil e eles são altamente especializados. Não sabem fazer outra cirurgia. Por isso é que ainda só me roubaram quatro para a privada. Estão nesse direito, vão ganhar mais…
Quanto? O dobro? 
O dobro? Se vivêssemos apenas do ordenado do hospital não tinha ninguém. O meu salário são 3 mil euros líquidos. Um cirurgião especialista não chega a ganhar 2 mil euros. 
E no privado? 
Já tive uns que foram aliciados para irem ganhar 150 mil euros por ano de ordenado base.

O que acha do ministro da Saúde, Paulo Macedo?

Como director deste serviço não tenho pejo nenhum em dizer que dentro das limitações que tinha foi o melhor ministro do governo. Alguns vão achar que eu estou a dizer uma enormidade… mas se não fosse ele acho que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) já não existia.

Também gostaria de vir a ser ministro?

Eu só poderia ter sido, por brincadeira, quando o Marcelo esteve à beira de ser primeiro-ministro. Era quase uma combinação, ele convidava-me para ministro da Saúde e eu recusava. Porque também me irrita que eu nunca seja ministeriável.

Gostava de ser convidado, mas não de exercer o cargo?

Podia ser um óptimo Secretário de Estado ou assessor para a área hospitalar. Mas como ministro durava dois dias.

E gostava de voltar a ser comentador?

Gostava de ser comentador nos assuntos em que eu sou perito mas esqueceram-se disso por causa do futebol. É a parte negativa, deixei de ter solicitações sem ser para o futebol. E acho que é injusto. Como é  possível não ser ouvido sobre a reforma da cirurgia ou sobre a reforma dos centros de referência, que foi a mais importante dos últimos anos? Tenho dos melhores centro de cirurgia e de transplante da Europa e depois só falo de penáltis? Até já tive um convite depois para fazer comentário desportivo.

E vai aceitar?

Claro que não!

Voltando à medicina. Como é um dia típico aqui no hospital?

Vivo a 500 metros daqui. Tenho uma reunião às 8h30 de todo o staff. No começo, fechava a porta às 8h40. Numa semana passaram a chegar todos a horas. Tenho 66 anos, já não sou tão chamado ao bloco como calcula, só vou quando quero eu ir e mesmo assim às vezes não me deixam. Temos uma reunião ao fim da tarde e se há jogo do Sporting tem de acabar 5 minutos antes. Se estou em Lisboa ao sábado e domingo também venho ao hospital.

Não faz vida em casa?

Então não faço! Mas não tenho cão, o gato morreu, os filhos saíram, por isso não tenho tanta obrigação, mas normalmente chego a horas de jantar. Também tenho muitas saídas. Sexta-feira tenho de ir a Roma, mas volto logo no sábado. Depois tenho de ir ao Brasil mas acho que não vou… porque me convidaram para ir a Pequim. Neste momento estou a ser muito solicitado. Eu animo essas conferências, está a ver? Há uns anos, num congresso em Pequim, uma coisa enorme, com dois mil chineses estava ali um silêncio… E o moderador: “Onde está o Barroso?” Tive de ser eu a começar. Mas depois têm de me calar, porque tomo conta das reuniões.

Fora do trabalho, o que gosta de fazer?

O charuto depois do jantar faz parte do meu prazer de existir. E nas férias fumo dois. Faz-me muito bem. O charuto é uma companhia fantástica. Tenho de ter algum cuidado porque prometi que nunca mais faria apologia do tabaco, depois de um problema que tive no Herman. Ele ofereceu-me um charuto e um whisky [na televisão] e disse que pagava a multa. A ordem dos médicos caiu-me em cima. Nunca mais deixei que me tirassem uma fotografia a fumar.

Tem casa de fim-de-semana?

Tenho uma no Penedo, onde não vou há seis meses, uma coisa inacreditável. A minha mulher protesta imenso com isso. O ano passado fui lá quatro vezes. É um crime, porque fica a 35 minutos daqui.

Já pensou na reforma?

Estou assintomático. Não digo que estou bem, digo que estou assintomático, porque amanhã posso aparecer amarelo e tenho um cancro do pâncreas. Não nos devemos gabar. Há uma frase de que eu gosto muito: “A saúde é um estado transitório que não augura nada de bom”. Isto para dizer que se tiver saúde gostava de ficar até aos 70. Mas aos 70 sou obrigado a sair.

E tem planos?

Gosto de escrever, e faço isso com facilidade. Vou escrever uma autobiografia mais profissional, sobre erros médicos, ética, qualidade em cirurgia, como se deve organizar os serviços e como vai ser o futuro. Às vezes angustia-me pensar que estou no fim [pausa], não convivo bem. Posso morrer de repente, como o meu pai ou meu avô. E depois cometo alguns excessos. O whisky à noite não me preocupa, mas o fumo sim, sobretudo depois de a minha irmã morrer com um cancro no pulmão.

Já tentou deixar de fumar?

Várias vezes. Aos 42 anos tive um susto muito grande. Ia começar um transplante, tinha estado toda a noite a escrever currículos e fumei dois ou três charutos. Fiz uns exames e estava trágico. Estive aí oito meses em que não comia, não bebia, não fumava. Até que o meu filho mais novo me disse: “Começa lá a comer e a fumar porque é insuportável viver contigo”.

Ficou com mau feitio?

Péssimo. Sabia que ia comer saladas, o que acho uma coisa trágica porque sou um carnívoro.