O Tribunal da Relação não altera uma linha àquilo que tinha decidido a 24 de Setembro e volta a apontar as mais duras críticas ao Ministério Público, por “sacrificar” os direitos de defesa de José Sócrates “para além dos limites constitucionais”. O segredo de justiça interno está, para todos os efeitos legais, esgotado, e esta tarde os advogados do ex-primeiro-ministro estarão à porta do Departamento Central de Investigação e AcçãoPenal (DCIAP) para consultar os autos da OperaçãoMarquês.
Os juízes desembargadores Rui Rangel e Francisco Caramelo voltaram a ser unânimes na decisão: José Sócrates – e todos os arguidos deste processo – devem ter acesso ao processo em que são suspeitos da prática dos crimes de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção. “A realização da justiça e da verdade material e a defesa dos interesses democráticos da sociedade moderna e civilizada (…) reclamam veementemente que se abra a ‘caixa de Pandora’ do segredo de justiça”, refere o acórdão.
Em quase 30 páginas, os desembargadores desconstroem os argumentos do Ministério Público (MP) no recurso que interpôs à decisão de final de Setembro e em que requeria a declaração de nulidade do acórdão de Rangel e Caramelo.
E voltam a não poupar nas considerações sobre os caminhos escolhidos pelos procuradores para adiar o acesso dos arguidos aos autos. Os juízes escrevem que as opções tomadas no DCIAP, e corroboradas pelo juiz de instrução Carlos Alexandre, “dizem–nos, também, de forma segura e certa que os direitos do arguido foram sacrificados para além dos limites constitucionais, dando uma prevalência excessiva ao segredo de justiça, com violação da Constituição e dos princípios fundamentais da proporcionalidade, da adequação e da necessidade”.
Tinha recaído precisamente sobre esse argumento – a violação da lei fundamental – a fundamentação do MP para contestar a decisão da Relação de há 20 dias.
Nesse recurso, os procuradores alegam que o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) viola quatro artigos da Constituição – entre os quais o número dois, em que se consagra que Portugal é um Estado de direito democrático em que impera a separação de poderes. O acórdão violaria ainda os artigos 20.o (“acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva”, 32.o (“garantias de processo criminal”) e 219.o (que estabelece as “funções e estatuto” do MP).
acesso imediato aos autos? É a questão que se coloca, e a que o acórdão não responde preto no branco.
Os juízes remetem essa questão para o Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), colocando a responsabilidade nas mãos de CarlosAlexandre. A assinatura do juiz de instrução criminal num despacho será o passo final para que se cumpra o acórdão. De qualquer forma, ao “Público”, o presidente do TRL, Luís Vaz das Neves, considerou que a decisão “produz efeitos imediatos”.
É também isso que esperam os advogados de defesa de José Sócrates – que até já remeteram um requerimento a Carlos Alexandre para que se faça valer a decisão da Relação. Daí que, ao início da tarde de hoje, PedroDelille e João Araújo se desloquem ao DCIAP para que seja cumprido o acórdão e lhes seja permitido ver o que disseram as testemunhas e que dados foram reunidos até ao momento pela investigação.
E o acesso está garantido? Esta é questão que as defesas de vários arguidos se colocam. A resposta imediata é sim. Mas, aqui, há outro “mas”.
A explicação jurídica é algo complexa. Fonte da Relação de Lisboa explica ao i que um eventual recurso para o TribunalConstitucional ainda é possível – e essa, que era uma mera possibilidade, arrisca agora passar a uma probabilidade, depois da revalidação de ontem.
“Em princípio”, diz a mesma fonte da Relação, um recurso desse âmbito teria “efeito devolutivo”, o que significa que não teria poder para suspender a aplicação do acórdão e impedir que o segredo de justiça fosse levantado de imediato.
Mas da teoria à prática pode ir o passo que dá margem suficiente ao MP para optar por esperar pela resposta dos juízes do Palácio Ratton ao seu pedido de fiscalização da constitucionalidade.
Ao mesmo tempo, ensaiam alguns advogados de defesa ouvidos pelo i, o procurador Rosário Teixeira poderá já ter-se antecipado à decisão de ontem, requerendo preventivamente a CarlosAlexandre a prorrogação do segredo de justiça por mais três meses (só podendo esse pedido ser aplicado até 21 de Novembro, dia em que o prazo do inquérito chega ao fim).
A tese, sublinham os advogados, é demasiado kafkiana para que seja considerada válida. Seria, ao mesmo tempo, feita ao arrepio das normais legais.
Ainda assim, por duas vezes durante esta semana, o i tentou esclarecer junto da Procuradoria-Geral da República se o MP teria recorrido a essa via. Os pedidos de esclarecimento não obtiveram, no entanto, qualquer resposta até ao fecho desta edição.