Ricardo III. No manipular é que está o ganho

Ricardo III. No manipular é que está o ganho


Ficou para a história por ter sido o autor de uma das mais criminosas subidas ao poder. De hoje a 1 de Novembro, para ver no Teatro Nacional D. Maria II.


Ricardo III, o antigo monarca inglês que tudo fez para chegar ao trono, ainda que à primeira vista não se vislumbrasse grande equação que sugerisse tal resultado. Ricardo segura a pá da obscuridade e escava o suficiente para atingir uma nova realidade doentia, manipulando a ordem dos eventos, a essência dos que o rodeiam. Neste “Ricardo III”, o aspirante a rei pode até fazê-lo literalmente, não fosse o cenário a reprodução do campo de batalha que se tornou a corte inglesa à época. Tudo isto com uma mãozinha de Tónan Quito, que assina a direcção artística da peça de Shakespeare. Para ver de hoje a 1 de Novembro no Teatro Nacional D. Maria II. 

A vontade de Tónan Quito de levar a palco “Ricardo III” não é de agora. Quando fez “A Irresistível Ascensão de Arturo Ui”, uma reescrita de Brecht do texto de Shakespeare, na Culturgest, ficou com o bichinho. Mais tarde voltou a reler a peça e a coisa reacendeu. Eis que, há dois anos, a arqueologia lhe fez a vontade de encontrar os ossos de Ricardo III sob o alcatrão de um parque de estacionamento de Leicester, em Inglaterra. 

Ou seja, não havia volta a dar, tinha de ser agora. “Esta é a altura perfeita para a fazer, é ano de eleições, fazia todo o sentido abordar a questão da política e do poder. É claro que o texto de Shakespeare é bem maior do que isso, é também sobre a vida e a morte, e aquilo que as pessoas têm de fazer para sobreviver. Ricardo, para sobreviver, tem de ser rei, tem de matar, tem de ser o modelo dele próprio e o modelo para a guerra”, conta. 

O espectáculo começa com uma bola vermelha no centro do palco, objecto que depressa perde o uso de uma eventual jogatana para servir a corcunda de Ricardo. Quem a detém é Ricardo, sim, que neste espectáculo todos os actores são, a uma ou outra altura, Ricardo. “Na ascensão ao poder há sempre lugares que ficam vagos, quando morre um grande líder facilmente surge o seu substituto. Portanto, nesta dança das cadeiras ninguém é inocente, da morte surge sempre um outro Ricardo. E ainda há aquela coisa que diz que, se fui morto às mãos de Ricardo, posso sempre ser o carrasco”, diz Tónan, que também sobe a palco e se torna o segundo Ricardo, se assim podemos dizer. O mais curioso nisto é que todos os actores querem ser Ricardo, ao ponto de roubarem a bola, perdão, a corcunda, uns aos outros durante o desenrolar do enredo, como o encenador nos clarifica: “Sim, há esse poder teatral dentro do núcleo dos actores, coisa que é assumida e que tem de ser vista pelo público.” 

“Ricardo III” oferece-nos uma realidade pérfida e imunda, embebida na propagação generalizada do ódio que Ricardo incute na corte, a bem ou a mal. Independentemente disso, o que aqui parece ficar congelado, a pairar na típica neblina britânica, é uma espécie de admiração em torno de uma criatura tão maquiavélica como Ricardo. Tónan Quito admite-a, mas garante não ter encontrado a explicação. “Não faço mesmo ideia. Ao longo da história temos assistido à subida de vários déspotas ao poder sem propriamente terem meios para isso. Fizeram-no, primeiramente, através da capacidade de retórica, que convence toda a gente. Como um indivíduo consegue manipular milhões de pessoas e como nós nos deixamos levar nesse tipo de conversas é que é estranho. O poder é muito sedutor, não tenho resposta para isso.” Ricardo também não devia ter. 

ESPECTÁCULO

Ricardo III
Direcção artística de Tónan Quito com António Fonseca, Miguel Moreira, Romeu Runa, Teresa Sobral, Sofia Marques, Paulo Pinto. De hoje a 1 de Novembro 

Preço: 5€ a 17€
Hora Quarta às 19 h; de quinta a sábado às 21 h; domingo às 16 h