Quando Jerónimo de Sousa se disponibilizou para viabilizar um governo do PS, afirmando mesmo que “o PS só não será governo se não quiser”, a declaração faz lembrar uma tentativa de reatamento de um namoro fugaz, quebrado há 40 anos. Na verdade, não terá nunca passado de um “flirt”, mas é inegável que, desde o início dos anos 70 do século passado, houve atracção, interesse e tentativa de compromisso. Socialistas e comunistas têm uma longa história de divergências insanáveis e mesmo de feroz confrontação. Voltando à imagem do namoro, poder-se-ia afirmar que quase existiu “violência doméstica”.
O partido fundado por Mário Soares em 1973 nunca se aliou aos comunistas, tendo ambos apenas convivido em cinco governos provisórios, entre Abril de 1974 e Abril de 1976, com desavenças graves pelo meio.
Na verdade, a ruptura definitiva dá-se entre Setembro e Novembro de 1975, “formalizada” em Abril de 1976, como resultado das primeiras eleições legislativas em democracia, que deram a vitória aos socialistas, com 1 milhão e 900 mil votos, contra 788 mil para os comunistas, que seriam a quarta força política no parlamento, atrás de PS, PPD e CDS.
Ao longo destas quatro décadas de regime democrático, realizadas já 14 eleições legislativas, os comunistas perderam mais de 600 mil votos, isto é, perto de 60 por cento do seu eleitorado inicial.
Quanto aos socialistas, ganharam e perderam eleições, foram governo em minoria, coligados com o CDS, com o PSD e governaram, por uma vez, com maioria absoluta.
Entre ambos os partidos, a diferença mínima de votos foi de cerca de meio milhão, em 1979, e a máxima foi superior a dois milhões, em 2005.
E quantas vezes comunistas e socialistas convergiram politicamente em questões relevantes da política nacional?
Na aprovação da Constituição, em Abril de 1976, onde só o CDS votou contra, na eleição de Mário Soares para a Presidência da República, em 1986, em que os votos dos comunistas foram decisivos, na segunda volta e, um ano depois, no derrube do governo minoritário do PSD, a que se seguiria, aliás, uma maioria absoluta do mesmo partido.
Vale a pena seguir a história conturbada das relações, ou ausência delas, entre o PS e o PCP, começando mesmo pelos últimos anos da ditadura, com ambos os partidos na clandestinidade e com os principais dirigentes no exílio.
”Inimigos íntimos”
A história destas relações é também, até ao início dos anos 90 do passado século, o confronto entre duas personalidades que marcaram a política portuguesa contemporânea: Álvaro Cunhal e Mário Soares.
Aqueles que ficaram conhecidos como “inimigos íntimos”, separados por onze anos de idade, conheceram-se como aluno (Soares) e professor (Cunhal) no colégio da família Soares, onde Cunhal foi tutor.
A personalidade de Cunhal tocou profundamente Mário Soares, como ele próprio admitiu. Soares filiar-se-ia mesmo no PCP, onde militou apenas sete anos, entre 1943 e 1950, altura em foi expulso do partido.
As razões da expulsão diferem conforme a versão de Soares ou do PCP. O fundador do PS afirma que se apercebeu do “plano de conquista do mundo” concebido pelo PC da União Soviética. Os comunistas acusaram-no de ter abdicado da luta.
As divergências terão começado aqui, embora se tenham registado períodos de aproximação, mas também de afastamento.
Em 1965, Mário Soares integra as listas unitárias da Oposição Democrática, que apenas concorreu em cinco distritos, mas que acabou por desistir, por manifesta falta de condições de imparcialidade.
No entanto, em 1969, numa das raras eleições em que a oposição à ditadura vai até às urnas, a nível nacional, Soares lidera a CEUD – Comissão Eleitoral para a Unidade Democrática, que concorre apenas em três distritos, não integrando assim a CDE – Comissão Democrática Eleitoral, onde estavam os comunistas.
Três encontros no exílio
No exílio, Soares e Cunhal encontram-se três vezes, em 1972, 1973 e, pela última vez antes do golpe de 25 de Abril de 1974, em Março desse ano.
Ambos prometeram cooperação na luta antifascista e defenderam a realização de eleições constituintes.
Depois de 25 de Abril de 1974, Soares, que chegou primeiro a Portugal, foi receber Cunhal ao aeroporto.
No dia 1 de Maio, desfilaram lado a lado, discursaram e abraçaram-se.
Seria a última vez que cairiam nos braços um do outro.
Um ano depois, na mesma festa e no mesmo local, os socialistas já seriam proibidos de entrar.
A ameaça de Cunhal
Nesses doze meses, a separação foi crescendo e atingiu mesmo níveis de violenta confrontação.
No livro de Maria João Avillez, “Soares, Ditadura e Revolução”, relata-se uma ameaça de Cunhal, numa reunião com o PS: “O melhor, para todos, é que o PS se junte a nós. Caso contrário, ocorrerá com os socialistas o mesmo que se passou já com a direita: serão implacavelmente eliminados!”
O primeiro sinal foi dado logo em Julho de 1974, quando o PS se insurgiu contra a institucionalização do MDP/CDE que seria, como os socialistas previam, uma verdadeira “muleta” do PCP, com quem se coligaria até 1985, na APU – Aliança Povo Unido.
Mas, o grande confronto teria lugar logo no início do ano de 1975, com a questão da unicidade sindical que muitos analistas consideram ter-se tratado de uma das lutas políticas mais importantes para a implantação da democracia em Portugal.
Em causa, duas visões antagónicas do movimento sindical. Os comunistas, com largo apoio no MFA, defenderam e fizeram aprovar a unicidade sindical, que obrigava os sindicatos a unirem-se numa frente unitária.
Os socialistas opuseram-se, defendendo a liberdade de constituição de sindicatos e, por via disso, a existência de mais do que uma central sindical.
A tensão entre os apoiantes destas forças políticas atingiu tal nível que, para evitar possíveis confrontos, foram proibidas manifestações convocadas para o dia 31 de Janeiro, pelo PS e pelo PCP.
Jornal “República”
Apesar das diferenças, cada vez mais evidentes, em relação ao regime político pretendido, os dois partidos conviveram em vários governos provisórios, chefiados por Palma Carlos, apenas o primeiro, e Vasco Gonçalves.
Em Maio, já na vigência do IV Governo Provisório, rebenta nova crise entre socialistas e comunistas, desta vez por causa do jornal “República”, após a tentativa de afastamento do seu director, Raúl Rego. O jornal é considerado um órgão oficioso dos socialistas, o que estes rejeitam.
Na sequência deste acontecimento, os socialistas, que acusam o PCP de estar por detrás destas movimentações, abandonam temporariamente o governo e convocam manifestações a favor da “liberdade de expressão”.
Soares garante: “O PC só pela força conseguiria alcançar o Poder em Portugal”.
Cunhal, por seu turno, afirma: “Portugal é hoje democrata, amanhã será socialista”, e demonstra ainda esperança de colaborar com os socialistas “para ir para a frente”.
O jornal regressa às bancas a 10 de Julho, dirigido por uma “comissão coordenadora de trabalhadores. Os ministros socialistas abandonam definitivamente o governo.
Uma semana depois, são os ministros sociais-democratas que saem do governo, apressando assim a sua queda.
Verão quente
O “Verão quente” é protagonizado pelos confrontos verbais e físicos entre os apoiantes de uma área política liderada pelo PS e uma outra, encabeçada pelo PCP.
Em causa estavam dois modelos de sociedade muito distintos e também duas estratégias para os atingir.
Para os socialistas, tratava-se de consolidar uma democracia pluralista, de tipo ocidental, com eleições livres como instrumento essencial para a atingir.
Os comunistas acreditavam na revolução das massas populares, conduzidas pelo partido. Numa entrevista à polémica jornalista italiana Oriana Fallaci, Cunhal afirmou: “Em Portugal, doravante, não existirá qualquer hipótese para a instauração de uma democracia como as que se conhecem na Europa Ocidental. Nunca mais!”
A disputa era agora pelas ruas. Ambas as áreas queriam mostrar a sua supremacia no apoio popular.
É o tempo das grandes manifestações, como foi a da Fonte Luminosa, em Lisboa, convocada pelo PS e que reuniu centenas de milhares de pessoas que ouviram Mário Soares desferir ataques duríssimos à direcção do PCP, que apelidou de “cúpula de paranóicos”, e exigir a demissão do primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, exigindo a sua substituição por alguém que “dê mais garantias de apartidarismo real”.
O PS já não participará no V Governo Provisório, o último chefiado por Vasco Gonçalves e que durou pouco mais de um mês.
Guerra civil
É também o tempo de ataques a sedes de partidos da área comunista, nas regiões centro e norte de Portugal. O clima crescente de confrontação fazia temer um desfecho terrível: a guerra civil.
No dia 6 de Novembro, ocorre o frente-a-frente decisivo entre Soares e Cunhal e que ditará o afastamento definitivo entre ambos.
Na RTP, durante quatro horas, os dois políticos protagonizaram um debate histórico em que evidenciaram divergências insanáveis. Ficou também para a História a acusação de Soares ao PCP de “querer transformar Portugal numa ditadura” e a lacónica resposta de Cunhal: “Olhe que não, olhe que não!”
A situação política precipita-se, até atingir a tensão máxima no dia 25 de Novembro, em que movimentações militares de lados opostos acabam por resultar na derrota das forças radicais de esquerda, com o PCP a demarcar-se, o que evitou sem dúvida uma confrontação militar de consequências imprevisíveis.
Tal facto não evitou, no entanto, que os comunistas tenham sido acusados de estar por detrás de uma tentativa de golpe militar.
Soares acusou o PCP de ser o “inspirador” do 25 de Novembro, utilizando a extrema-esquerda como “guarda-avançada”. No entanto, criticou ao mesmo tempo o PPD, que tinha exigido a saída do PCP do VI governo. Num jogo notável de equilíbrio político, o PS apoiou a manutenção do PCP no campo da legalidade democrática, defendida nesse mesmo dia por Melo Antunes.
Finalmente a democracia
Portugal entra definitivamente no caminho da democracia política de tipo ocidental.
O PS vence as primeiras legislativas com uma diferença de mais de um milhão e cem mil votos para os comunistas.
Os governos que se sucedem terão sempre na sua composição apenas três partidos: PS, PSD e CDS. Ao longo dos anos experimentaram-se todas as hipóteses: PS sozinho, PS com CDS, PSD com CDS, PSD sozinho. Os comunistas não mais chegaram à área do poder, uma vez que, por um lado, os seus resultados eleitorais nunca o permitiram e, por outro, o modelo de sociedade que defendem não é maioritariamente aceite pelos eleitores.
Na verdade, o PCP foi adaptando o seu programa à evolução dos tempos. Logo em Outubro de 1974, por exemplo, retirou do texto programático a expressão “ditadura do proletariado”.
O fim da “ditadura”
No seu livro “ Foi assim”, Zita Seabra, na altura uma destacada militante do PCP, afirma que a decisão de retirar a expressão “ditadura do proletariado” do programa do partido foi tomada por Álvaro Cunhal, para “não assustar as camadas da população que nesta fase nos apoiavam e que eram nossos aliados, a média e a pequena burguesia urbana e os camponeses, tal como os sectores mais hesitantes do MFA.”
O PCP sabia que tinha de dar um passo de cada vez. Na sua estratégia, o momento pós 25 de Abril era o da “Revolução Democrática e Nacional”.
40 anos depois do 25 de Abril, num texto publicado no “Militante”, um órgão oficial do PCP, pode ler-se: “A Revolução portuguesa foi uma revolução inacabada. O processo revolucionário que se desenvolveu impetuosamente a seguir ao derrubamento do fascismo, em 25 de Abril de 1974, e que mudou radicalmente a face de Portugal, foi brutalmente interrompido pelo avanço da contrarrevolução. A questão do poder político, o não se ter conseguido destruir toda a máquina do Estado fascista e não ter sido possível construir um Estado democrático; a fragilidade da aliança da classe operária com o campesinato e não se ter resolvido os seus problemas; as contradições que levaram a divisões no seio das forças democráticas e no seio do MFA; o papel do esquerdismo; a ação do imperialismo (CIA), da social-democracia europeia, das forças reacionárias, do papel do PS e da sua ligação aos sectores mais conservadores e à direita facilitaram e abriram as portas ao avanço da contrarrevolução.”
Apoio a Soares em 1986
Como acima já referi, ao longo destas quatro décadas, comunistas e socialistas tiveram, para além da votação do texto constitucional, dois momentos importantes de convergência, sendo, sem dúvida, o mais decisivo o do apoio a Mário Soares na segunda volta das eleições presidenciais de 1986, que se revelou decisivo para a sua vitória.
Os comunistas realizaram um congresso extraordinário para aprovar esse apoio, a um homem que eles próprios tinham elegido como o “inimigo público número um”.
Cunhal declarou mesmo, na altura. “Se for necessário, tapem a cara dele mas ponham a cruz no quadrado certo”.
A Queda do Muro de Berlim
No final dos anos 80 do século passado, o bloco comunista do leste da Europa desintegra-se e o PCP viveu uma das maiores crises da sua história. Muitos militantes, alguns deles históricos, abandonam o partido. Em Maio de 1990, no XIII Congresso, apesar de tudo, o PCP mantem a linha leninista e reafirma a “revolucionária jornada até ao Socialismo”.
Carlos Carvalhas substitui Álvaro Cunhal, em 1992. Doze anos depois, em 2004, é a vez de Jerónimo de Sousa o substituir.
Apesar das mudanças de liderança de um e outro partido (neste mesmo período o PS conheceu quatro líderes: Jorge Sampaio, António Guterres, Ferro Rodrigues e José Sócrates), a distância manteve-se.
Ao longo destas quatro décadas, a confrontação foi uma constante, com alguns momentos mais distendidos, como foram, por exemplo dos governos de António Guterres, entre 1995 e 2002.
Contra a UE e o euro Nas respectivas essências, quase nada une socialistas e comunistas. Têm visões opostas de modelos de sociedade, quer político, quer económico.
Basta recordar, por exemplo, a oposição manifestada pelo PCP à adesão de Portugal à CEE, em 1986.
Ainda hoje, o programa do PCP, com a bandeira da “Democracia Avançada no Limiar do Século XXI”, afirma a necessidade do “desmantelamento da União Económica e Monetária, e o estudo e a preparação para a libertação do País da submissão ao euro, visando recuperar instrumentos centrais de Estado soberano (monetário, orçamental, cambial); a eliminação de condicionamentos estratégicos pelo controlo público de sectores como a banca e a energia”, reafirma a necessidade de romper “com a conivência e subserviência face à União Europeia e à NATO.”
Do lado do PS, as suas linhas programáticas são totalmente opostas: “A Europa e, dentro dela, a Zona Euro, são o espaço de referência de Portugal. É aí que queremos situar-nos, e é aí que podemos desenvolver-nos. Ao contrário do que pensam as forças políticas que, mais ou menos explicitamente, defendem, ou pelo menos admitem, a saída do euro, o PS entende, pelo contrário, que isso significaria um grave retrocesso para o nosso país. É dentro da Europa e com a Europa que os desafios devem ser vencidos.”
Historicamente destinados a estarem nos lados opostos da barricada, pela primeira vez os dois partidos podem tentar encontrar uma solução comum para governar Portugal.
Terão finalmente ultrapassado o “complexo de Marx”, na expressão de Eduardo Lourenço, que, segundo ele, “une e separa, como estranha fascinação, os dois grandes partidos, PS e PCP”?
Ou já nada disso existe, e resta apenas a estratégia de conquista do poder?
Realpolitik. Assim se chama.
* Jornalista