Bactéria resistente em Gaia. “Lotação acima do esperado dificulta prevenção”

Bactéria resistente em Gaia. “Lotação acima do esperado dificulta prevenção”


Uma doente que tomou antibióticos durante mais de um mês estará na origem do surto que terá feito três mortos. Perita alerta para problemas que dificultam combate à transmissão.


Tudo terá começado com uma doente na casa dos 70 anos, internada no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho este Verão. Após uma operação por suspeita de cancro do cólon, a doente foi reinternada e esteve no hospital com uma infecção, ao todo, 54 dias até ter alta, tendo feito vários ciclos de antibiótico, um dos quais por um período de um mês. Esta é, para já, a suspeita mais forte para o chamado “paciente zero” do surto de uma bactéria multirresistente que o centro hospitalar ligou ontem a três mortes de doentes muito debilitados que estiveram internados na unidade. Outros cinco doentes que faleceram recentemente na instituição também deram positivo para a bactéria, mas tendo em conta a causa de morte, os responsáveis descartam que a infecção contraída no hospital tenha sido decisiva.

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O surto foi ontem tornado público pelo “JN” e só hoje haverá um balanço por parte da Direcção--Geral da Saúde. Dentro do problema das chamadas infecções hospitalares, que em 2013 foram ligadas a cerca de 4600 mortes em Portugal, embora não seja possível um balanço exacto (ver caixa), a emergência de uma estirpe de Klebsiella pneumoniai resistente a vários antibióticos em simultâneo é considerada um problema raro –, estima-se que apenas 1,8% dos espécimes isolados tenham este comportamento. Noutras bactérias, como a Staphylococcus aureus, a taxa de espécimes resistentes chega a rondar os 50%. Mas, segundo o i apurou, a DGS acompanha a situação com particular atenção, já que a taxa de resistência desta bactéria na Europa tem vindo a aumentar e, em países como a Grécia, já há um conjunto de casos em que nenhum antibiótico funciona.

30 doentes infectados O alarme soou no Centro Hospitalar de Gaia/Espinho a 7 de Agosto, quando a estirpe altamente resistente, até então nunca detectada na instituição, foi isolada num doente. Margarida Mota, coordenadora do Grupo Coordenador Local do Programa de Prevenção e Controlo de Infecção e Resistência aos Antimicrobianos do Centro Hospitalar Gaia/Espinho, explicou ao i que a partir desse momento desencadearam os protocolos e fizeram um rastreio dos contactos, de forma a apurar se haveria outros doentes infectados e onde poderia ter começado o surto.
Isso levou-os a rastrear 44 pessoas, tendo 30 dado positivas para a bactéria. Destas, 13 permanecem internadas, oito faleceram e as restantes tiveram alta. Uma vez que se trata de uma bactéria de transmissão através das fezes, sendo importante a higiene nos contactos, os peritos reforçaram a sensibilização de profissionais, doentes e famílias.
Para Margarida Mota, embora não haja certezas, tudo aponta para que o surto tenha começado devido àquilo a que os especialistas chamam “pressão antibiótica” – quando se faz um antibiótico por demasiado tempo, ou incorrectamente, aumenta o risco de as bactérias, ao multiplicarem-se, desenvolverem mutações que as tornam resistentes às moléculas a que houve exposição. A médica explica, contudo, que muitas vezes o problema do recurso excessivo a antibióticos não é simples de resolver.“Há um uso excessivo de antibióticos em Portugal. Neste caso, não posso dizer se houve ou não, mas todos os doentes que avaliámos eram quadros clínicos com situações infecciosas prolongadas que, ou são tratadas, ou podem correr muito mal”, salienta Margarida Mota.“Não nos podemos esquecer de que a medicina é cada vez mais interventiva e submetemos doentes com outros problemas de base a cirurgias complicadas que se calhar, noutros tempos, nunca aconteceriam.” 

Cadeia de transmissão Se na origem do surto estará então a pressão antibiótica, para a transmissão há outras variáveis a pesar, e Margarida Mota considera que este surto deve servir de alerta para o combate às infecções hospitalares não só na unidade, mas no país. “O facto de trabalharmos em pavilhões dificulta muito o controlo da infecção, já que temos de mobilizar os doentes muito frequentemente, por exemplo para exames”, explica. A especialista aponta ainda a existência de carência de camas para alguns picos de procura como outra dificuldade. “Termos uma lotação acima do esperado também dificulta muito medidas de precaução, uma vez que as camas, por vezes, estão demasiado próximas e o excesso de doentes e de trabalho pode levar a quebrar medidas de prevenção como a higiene adequada.” 

Ainda assim, a especialista salvaguarda que ninguém está imune. “Um estudo recente mostrou que esta bactéria em particular infectou nove doentes numa enfermaria topo-de-gama, quase só para estes casos. Nós estamos a falar de 30 casos numa instituição com 500 camas. Não se trata de desculpar, mas ter a noção do desafio.” Todos os anos, a unidade faz dois retratos da prevalência de infecções hospitalares, em Maio e em Novembro. A análise mais recente, em Maio, já tinha alertado a equipa de Margarida Mota, ao ter sido apurada uma taxa de prevalência de infecções hospitalares de 15% que os peritos associaram ao facto de estarem muitos doentes debilitados com infecções respiratórias, ainda na sequência da época de gripe e da sobrelotação das enfermarias. Na análise anterior, o hospital estava dentro da média nacional, que aponta para que um em cada dez doentes (10%) que entram nos hospitais apanhem algum tipo de infecção.A expectativa de Margarida Mota é que as análises que vão repetir no próximo mês apresentem valores mais baixos.

Combate está a resultar O director-geral da Saúde, Francisco George, que ontem não quis comentar o surto em Gaia, defende que desde a implementação do Programa de Prevenção e Controlo de Infecções e de Resistência aos Antimicrobianos, em 2012, há sinais de que o combate às infecções hospitalares começa a ter resultados. O programa veio reforçar as estruturas locais de acção – equipas como a liderada por Margarida Mota –, mas também fornecer normas clínicas sobre os tratamentos com antibióticos. Em 2012, a taxa de Staphylococcus aureus resistentes a meticilina baixou pela primeira vez e em 2013 repetiu-se a tendência. Portugal tinha os piores indicadores a nível europeu e hoje já passou para o terceiro lugar.