Carlos Saboga. “Dificilmente aceitaria que alguém escrevesse o argumento de um filme meu”

Carlos Saboga. “Dificilmente aceitaria que alguém escrevesse o argumento de um filme meu”


Afirmação que se entende, não tivesse sido argumentista a vida inteira. Aos 76 anos decidiu agarrar um sonho em que já não acreditava: ser realizador. “A Uma Hora Incerta”, o seu segundo filme, estreia-se amanhã nas salas.


Ditou o tempo – noutras palavras: as circunstâncias – que não fosse realizador. Tanto o quis que nunca o foi, tanto o desejou que quando a altura chegou disse que se sentia velho. É para estas ocasiões que os amigos também servem: velhos são os trapos disse-lhe António Cunha e Teles, produtor do seu filme de estreia “Photo”, em 2012. Quer aí, quer sobretudo neste “A Uma Hora Incerta”, a ditadura é a imagem de fundo e a PIDEo saltimbanco do seu imaginário criativo. Correntes que sempre foi desamarrando, quer em miúdo, quando se colava a mulheres, que simulavam ser suas mães, para entrar sem bilhete no cinema; quer em jovem quando decidiu sair de Portugal – depois de duas vezes preso – à boleia de uma equipa de cinema francesa. Aos 79 anos, Carlos Saboga não abdica do que sempre foi: argumentista. Porém, se a vida lhe der licença, esperem-se mais filmes onde o seu nome é creditado como realizador. 

Para alguém que foi argumentista a vida inteira torna-se mais difícil afastar as suas vivências pessoais enquanto realizador?
Quer dizer, comecei por não querer ser argumentista. Não era a minha vocação, queria ser realizador, aliás, foi como assistente de realização que me iniciei nesta área. Ou seja: tinha a ambição mais ou menos longínqua de vir a realizar. Isso não foi possível durante muito tempo e quando chegou o momento de poder visar a realização achei que já era demasiado tarde. 

A que se ficou a dever essa falta de oportunidades?
Sou relativamente reservado, não sou muito de me meter à frente, de modo que como nunca me foi proposto realizar, deixei de pensar nisso. Pensei “bem, vou ser argumentista, já não é mau”. 

Até que alguém o convenceu, foi isso?
Sim, o AntónioCunha e Teles propôs-me realizar, prontificava-se a produzir o filme se tivesse um argumento e aí decidi tentar. Ainda lhe falei da minha idade ao que ele respondeu que era mais velho do que eu e que continuava a realizar. Isso acabou por me convencer. O ICA financiou-me a escrita do argumento mas depois recusou-me o subsídio, várias vezes. Acabei por falar com o Paulo Branco e arranjei dinheiro em França, no Canal+. Foram as circunstâncias que me fizeram realizar. A partir do momento em que se faz uma vez sabe-se que se consegue fazer, a par disso gostei bastante de realizar, foi muito gratificante, portanto, enquanto conseguir, vou continuar.

Disse que ser argumentista “não é mau”. Mas presumo que seja uma profissão que lhe dê gosto, correcto?
Claro que sim, continuo a gostar, estou a escrever um argumento para outra pessoa nesta altura, a não ser que não me queiram não vou parar. Mas gosto, sobretudo, do trabalho colectivo. Quando se é argumentista profissional as encomendas vêm de vários sítios, podem vir de um produtor, de um canal de televisão e, a partir daí, acontece muito pouco trabalho colectivo, não sabemos bem quem vai ser o realizador, em que condições vai ser realizado, ou seja, torna-se muito mais aleatório. 

Foi autor de inúmeros argumentos. Deixaria que alguém escrevesse um argumento para si?
Dificilmente aceitaria que alguém escrevesse o argumento de um filme meu. Posso é adaptar livros, histórias de outras pessoas, mas ver alguém a escrever para mim…

Faz-lhe confusão?
Pode acontecer, conheço outros argumentistas por quem tenho estima, mas não os sinto próximos do que quero fazer e como sei que o posso fazer eu… é mais fácil. 

Já pensou, eventualmente, em fazer um remake?
Nem por isso, o que já pensei foi fazer um remake de filmes que escrevi e que foram realizados por outros. 

Como por exemplo?
É melhor não especificar, não quero ferir susceptibilidades, vou dizer que o realizador não me satisfez, o que é verdade mas não quero ofender as pessoas. 

Essa insatisfação acontece regularmente com os argumentistas?
Acontece quase sempre. Quando se escreve um argumento, faz-se, ao mesmo tempo, a mise en scène na cabeça, é impossível escrever um argumento sem ver as imagens que se prevê que o ilustrem. Diria que é bastante normal que o filme não corresponda às expectativas do argumentista. Não é muito agradável, mas enfim. No meu caso, onde fiquei mais insatisfeito foi quando trabalhei com a televisão em França. 

Perante esse sentimento, o que há a fazer?
Aceitar o facto, ou faz ou não faz, há que saber viver com isso, são as regras do jogo. Tem-se pena, mas não é dramático, é um filme, ninguém morre, a não ser os que morrem no argumento. É frustrante. 

O tempo da ditadura está presente nos dois filmes que já realizou. Quando se vive algo desta dimensão tornamo-nos algo reféns, a nível criativo?
Nem por isso, aqui o problema é a idade. Se começo a realizar aos 20 anos tenho uma experiência de vida muito mais curta, quando se começou como eu é evidente que as referências ao passado sejam mais espontâneas. Por outro lado, também é verdade que o cinema, a mim, remete-me para a infância. A sua geração vê os filmes da televisão, no meu tempo a televisão não existia. Passava as férias na Figueira da Foz, onde nasci. Lá existiam dois cinemas que mudavam de programação todos os dias…

Grandes tempos…
Sem dúvida, eram dois filmes por dia garantidos.

Tem a ideia da idade que teria?
Penso que uns 7 ou 8 anos. Havia uma técnica na Figueira que era bastante curiosa. Como não tínhamos dinheiro para estar sempre a pagar bilhete, esperávamos que uma senhora viesse sozinha e as crianças que estavam acompanhada não pagavam. As senhoras faziam como se fossemos filhos delas, isto apesar dos porteiros já nos conhecerem, estávamos lá todos os dias e eles estavam-se nas tintas. O cinema continua a ligar-me ao passado, sem dúvida. Por outro lado, fiz dois filmes, se tivesse feito dez já teriam existido alguns onde o Estado Novo não surgiria. 

Relativamente à sua saída de Portugal… sei que o fez com uma equipa de cinema francesa. 
Exacto, era uma equipa que tinha vindo a Portugal fazer um filme da qual era assistente de realização, falar francês ajudou bastante. Tinha saído da prisão poucos meses antes, de modo que já tinha decidido sair do país. Conheci uma contrabandista em Castelo de Vide, bem perto da fronteira, e pedi-lhe para sair. Contei à equipa e eles decidiram que iam ajudar-me a fugir.O que não foi nada boa ideia porque aconteceram uma série de peripécias… 

Quer falar sobre isso, ou prefere abster-se?
É muito complicado e longo, nunca mais saímos daqui. Ultrapassei Espanha com eles até Barcelona e depois passei os Pirenéus a pé com um actor que era da Catalunha francesa. Foi assim que cheguei a França e pude ter logo trabalho. 

É autodidacta, e logo de uma profissão tão específica. Presumo que as férias na Figueira da Foz tenham sido essenciais.
No meu grupo de amigos todos queríamos escrever. Uma das coisas que fazia na escola com um amigo era adaptar os filmes a banda desenhada com papel químico, como não havia forma de reprodução fazíamos pequenos álbuns de banda desenhada e vendíamos a 50 cêntimos. Um deles foi “Os Inconquistáveis” do Cecil B. DeMille, ainda me lembro. Era já uma inclinação para qualquer coisa. 

Já era proactivo, pelo menos…
Havia ainda outra coisa que fazia…uma aldrabice pegada. Como vivia entre duas cidades, na Marinha Grande de Inverno e na Figueira da Foz noVerão, e como não era grande jogador de futebol, a maneira de me impor no grupo era a contar filmes. A certa altura já não havia mais filmes para contar e então juntava argumentos, colava coisas de um filme para outro e assim. 

E os seus colegas acreditavam?
Acreditavam [risos]. Já tinha, pelo menos, um jeito especial para contar histórias. 

Actualmente qualquer um pode tornar-se autodidacta através do YouTube. Naquela altura, como é que aprendeu as técnicas para se tornar argumentista?
Foi fazendo. Comecei pelo standard, os três actos e afins, coisas que rejeitei rapidamente. Fui, a pouco e pouco, encontrando uma técnica pessoal, mas nunca andei na escola. Li muitas entrevistas a argumentistas, li revistas de cinemas, livros de técnica de argumento, pertenci a cineclubes, tudo isso contribuiu. Tenho uma curiosidade insaciável, continuo a ter. Isso parece-me fundamental.

Mais sobre este filme, quando começou a pensar sobre ele?
Foi-me proposto pelo Paulo Branco que fizesse um filme barato. Comecei logo a pensar no critério económico, portanto, reduzir ao máximo os actores, o décor, tudo isso contribui para que a história venha assim. É evidente que a história vem assim porque a PIDE, neste caso a PVDE, faz parte da mitologia da minha adolescência. Os seus agentes impõem-se no meu imaginário, tornou-se inevitável que estes estivessem lá. 

Ilda, a personagem central é uma rapariga bastante curiosa para a época…
As mulheres são esquisitas [risos]. Tive namoradinhas na altura que sabiam muito mais do que eu, há uma capacidade das mulheres de transgredir as regras… de uma maneira particularmente corajosa. Ela própria é um bocado contraditória, tem um retrato do Salazar à cabeceira. Mas aquelas personagens existiam, havia uma rapariga na Figueira que era a Romana, que tomava banho nua quando não existiam turistas. Ou seja, se as pessoas se documentarem vão perceber que há inúmeras personagens mulheres licenciosas naquela altura, digamos assim. 

O ambiente do filme também é algo claustrofóbico. Fê-lo com esse intuito?
É o clima de Portugal, é um país fechado, onde na altura havia uma repressão enorme. Isso reflectia a situação de Portugal na altura, que, de repente é invadido por uma série de refugiados que encontram aqui, paradoxalmente, a sua liberdade. É curioso.