“Se há um campo em que os mitos e crenças são particularmente prevalentes e graves, é no da saúde”

“Se há um campo em que os mitos e crenças são particularmente prevalentes e graves, é no da saúde”


António Vaz Carneiro – Médico, director da Cochrane Portugal e do Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.


O autor deste estudo diz que a crença nos antioxidantes tem contornos quase religiosos. Concorda? Sim, é um dos grandes mitos da saúde. Um dos estudos mais interessantes em torno dos antioxidantes saiu há dois anos na revista “JAMA” e analisou o papel dos suplementos na prevenção da mortalidade em geral. Foi uma revisão sistemática de 78 ensaios feita pela organização Cochrane que incluiu uma amostra de quase 300 mil pessoas.

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O que fizeram foi comparar as taxas de mortalidade entre pessoas que não tomaram nada ou tomaram placebos com o efeito dos suplementos como vitamina A, E, C, betacarotenos e selénio. Verificaram que, sendo todos os outros factores iguais, não só as pessoas que tomavam suplementos não morriam menos como pareciam ter maior risco. É uma diferença pequena, mas dá a ideia de que não só não faz bem como faz mal. Portanto, a mensagem é a seguinte: se uma pessoa não tem uma doença em que precise de combater défices vitamínicos ou não esteja a fazer uma terapêutica que cause um défice, não deve tomá-los.

Como se explica que algo sem evidências esteja tão banalizado? Basta pensar nas medicinas alternativas. À excepção da acupunctura, alguma vez se conseguiu provar algum resquício de eficácia? Não. E, no entanto, é um negócio absolutamente florescente. As pessoas acreditam naquilo de que gostam de acreditar e, se há um campo em que os mitos e as crenças são particularmente prevalentes e graves, é no da saúde. Tenho atacado muito a classe médica, a Ordem e o ministério no sentido de dizer que não estamos a fazer o nosso trabalho de promover a literacia em saúde.

Podiam ter um papel mais proactivo? Devíamos, é uma questão ética. Quando às oito da noite aparecem na televisão aqueles anúncios dos stresstabs ou outros suplementos do género com vitaminas, não seria possível o ministério ou a Ordem pagar um anúncio em que aparecesse um médico reconhecido a dizer: “Sabe o que acabou de ouvir? Não há evidência nenhuma de que seja verdade, antes pelo contrário. Parece que quem toma as vitaminas morre mais.” Não era possível fazer isto, em vez de deixar o mercado nas mãos de grandes companhias que têm dinheiro para anúncios?

Nas consultas, os médicos são mais diligentes? Em princípio, devem aconselhar os seus doentes. Muitas vezes têm é dificuldade em encontrar evidência de boa qualidade para poderem articular argumentos perante um doente afirmativo que leu em 22 páginas na internet que a vitamina B lhe fazia bem. E, muitas vezes, o doente não acredita em nós. Acha que estamos a ser corporativistas ou que não sabemos porque não é a nossa ciência, como se a ciência não tivesse regras. 

Um médico não tem também receio de mais tarde se verificar que afinal fazia bem? Não deve, porque a ciência admite resultados contraditórios que muitas vezes podem ser explicados. Claro que estou a falar em situações simples e há populações vulneráveis e contextos. Os doentes oncológicos são muito vulneráveis porque, muitas vezes, o tratamento é tumultuoso e muitos cancros acabam por aparecer novamente, chegando a um momento em que não temos nada para oferecer ao doente. Se aí o doente me disser que vai fazer vitaminas ou o que quer que seja, não posso dizer nada. Quem sabe se aquele não é o único caso em que quaisquer cadeias bioquímicas farão com que o tumor desapareça. Nessas circunstâncias, e percebendo o desespero, não me parece haver quebra do princípio ético, desde que não existam falsas promessas.

Além da publicidade, que outras medidas lhe parecem importantes? Informação adaptada às pessoas, com linguagem não técnica. Devia haver um departamento no ministério que pudesse trabalhar isto. Mais importante do que dizer que há estudos a dizer que as vitaminas fazem mal, importa quem o diz e como diz. Estamos a trabalhar nisso na Cochrane e no CEMBE, mas é preciso financiamento porque fazer vídeos, animações e quizzes requer know-how e investimento. A saúde é das áreas onde há mais mitos e crenças e, se alguns não fazem mal, outros são extraordinariamente importantes. Veja-se a relação entre vacinas e autismo. Por esse motivo, e porque sabemos que pessoas com mais literacia têm mais saúde e consomem menos medicamentos, é preciso investir nisto. Falta apenas uma decisão política.