Outono


Aproveitando os dias de tempo agradável, vale ainda a pena passear, escolhendo um percurso bonito e tranquilo, revisitar o mar e ver nele as cores do pôr-do-sol.


© Ozerov Alexander/Shutterstock

“Uma dúzia, por favor, sr. Eduardo. Bem quentinhas!” Felizmente ele está todos os anos na Praça de Londres, a relembrar que o Outono chegou, e com ele as castanhas, a melancolia, a quietude, os primeiros pingos de chuva e a doçura da luz magenta.

Já se vê o fumo no ar e este, mais pesado pela humidade que os nossos ossos sentem, deixa-o pairar, fazendo pensar, num primeiro momento, que os incêndios ainda estão activos, mas afinal, não… são os primeiros cheiros do Outono – castanhas na cidade, queimadas no campo –, uma estação bela mas ambivalente em que a cor magenta domina os céus, os pores-do-sol surgem em cambiantes de rosas e lilases e os dias são nitidamente mais curtos, adivinhando-se o “acentuado arrefecimento nocturno” que nos chega quando caminhamos de volta a casa, ansiosos por um lar acolhedor e um ambiente que nos acarinhe.

Nos dias bonitos, ao fim-de-semana ainda se podem colher algumas amoras das que restam, bem escuras e doces, nas silvas que pendem das pedras nas veredas campestres. De manhã e ao fim da tarde, a neblina desce a encosta e forra o vale, e as ovelhas balem quando o rebanho desce a colina e regressa ao estábulo. Apetece vestir uma camisola de lã e beber um chá bem quente.

O Outono é o tempo do armazenar, depois do salto e do viço primaveril, e da abundância e do colher do Verão. Virá depois o Inverno, com a sua (aparente) hibernação e a preparação de mais um ciclo da natureza. Mesmo que a invenção da luz artificial, do aquecimento dos ambientes e de ritmos sociais, escolares e laborais que começam precisamente quando deveriam estar a acabar (é no início do Outono que se iniciam as aulas e os trabalhos, e durante o Inverno, fase em que deveríamos, biologicamente, estar em poupança de energia, estamos sobrecarregados de dispêndio, seja físico, seja intelectual) tenha alterado por completo a nossa relação com os ciclos sazonais da natureza, esta estação convida à melancolia, dormência, contemplação e quietude. Por vezes, mesmo à depressão.

Quando éramos pequenos, a avó fazia doces e marmelada, aproveitando as peras e maçãs, os pêssegos e os figos.

E as gamboas, aqueles marmelos grandes e tão duros que não se podem comer ao natural. Todavia, os “frutos da época” são os frutos secos, expoentes de energia concentrada e duradouros, ao contrário dos apetitosos, sumarentos mas rapidamente perecíveis frutos do Verão (meloa, melão, melancia, ameixas…). Os supermercados, com o export-import e a ajuda das estufas, subvertem esta realidade, mas há frutos que nesta época já desapareceram ou cujo preço denuncia estarem fora da estação.

E as vindimas? Quem não olha para as videiras, plenas de cores e matizes, do ainda verde ao mais pungente dos roxos e bordeaux, e anseia por ir até ao Douro, nem que seja em pensamento? É altura do cheiro a mosto, das primeiras queimadas e – não esquecer – de pedir ao sr. Tiago que traga a lenha para a lareira. Um destes fins-de-semana há que gastar algum tempo a arrumar a roupa de Verão nos armários mais altos, despedindo-nos com um “até para o ano” dos fatos de banho e das T-shirts, e convém desencher as bóias e os outros artefactos aquíferos das crianças, retirando “para baixo” a roupa de Inverno, as gabardinas, as botas… e os chapéus-de-chuva.

Aproveitando os dias de tempo agradável, vale ainda a pena passear, escolhendo um percurso bonito e tranquilo, revisitar o mar e ver nele as cores do pôr-do-sol, já com algumas nuvens que surgem, multicolores, a reflectir os laranjas do fim de tarde e a relembrar que os dias são mais curtos – mais ainda quando mudar a hora. Um passeio em espaços naturais (parques, junto a um rio, campo, praia) pode ser o melhor remédio para resolver a ambivalência física e psicológica que se apodera de nós e, ao regressar, “uma lareira já calhava bem”.

“Uma dúzia, por favor, sr. Eduardo. Bem quentinhas!” Felizmente ele está na esquina da Praça de Londres com a Avenida de Paris, nomes que lembram cidades onde o frio já se faz sentir como porventura nunca em Portugal. Mas o sr. Eduardo, ao vender as castanhas, primorosamente escolhidas na sua terra natal, na Beira interior, sorri com uns grandes olhos azuis e neles já se podem antever os gelados que terá na sua banca, a partir de fim de Maio, e que saciarão a sede e aliviarão a canícula no Verão, que vai tardar mas vai surgir… porque se não há Outono sem o Verão que passou, também não haverá Verão sem o Outono em que estamos mergulhados…

Les sanglots longs
Des violons 
De l´automne
Blessent mon cœur 
D´une langueur 
Monotone (1).

Paul Verlaine

Pediatra
Escreve à terça-feira 

(1) “As lágrimas longas/ dos violinos/ do Outono/ ferem o meu coração/ com um monótono/ langor” (tradução livre) – Este excerto do poema “Chanson d´automne”, de Paul Verlaine, foi a senha que desencadeou a invasão da Normandia pelas tropas aliadas, em Junho de 1944, na designada Operação Overlord.

Outono


Aproveitando os dias de tempo agradável, vale ainda a pena passear, escolhendo um percurso bonito e tranquilo, revisitar o mar e ver nele as cores do pôr-do-sol.


© Ozerov Alexander/Shutterstock

“Uma dúzia, por favor, sr. Eduardo. Bem quentinhas!” Felizmente ele está todos os anos na Praça de Londres, a relembrar que o Outono chegou, e com ele as castanhas, a melancolia, a quietude, os primeiros pingos de chuva e a doçura da luz magenta.

Já se vê o fumo no ar e este, mais pesado pela humidade que os nossos ossos sentem, deixa-o pairar, fazendo pensar, num primeiro momento, que os incêndios ainda estão activos, mas afinal, não… são os primeiros cheiros do Outono – castanhas na cidade, queimadas no campo –, uma estação bela mas ambivalente em que a cor magenta domina os céus, os pores-do-sol surgem em cambiantes de rosas e lilases e os dias são nitidamente mais curtos, adivinhando-se o “acentuado arrefecimento nocturno” que nos chega quando caminhamos de volta a casa, ansiosos por um lar acolhedor e um ambiente que nos acarinhe.

Nos dias bonitos, ao fim-de-semana ainda se podem colher algumas amoras das que restam, bem escuras e doces, nas silvas que pendem das pedras nas veredas campestres. De manhã e ao fim da tarde, a neblina desce a encosta e forra o vale, e as ovelhas balem quando o rebanho desce a colina e regressa ao estábulo. Apetece vestir uma camisola de lã e beber um chá bem quente.

O Outono é o tempo do armazenar, depois do salto e do viço primaveril, e da abundância e do colher do Verão. Virá depois o Inverno, com a sua (aparente) hibernação e a preparação de mais um ciclo da natureza. Mesmo que a invenção da luz artificial, do aquecimento dos ambientes e de ritmos sociais, escolares e laborais que começam precisamente quando deveriam estar a acabar (é no início do Outono que se iniciam as aulas e os trabalhos, e durante o Inverno, fase em que deveríamos, biologicamente, estar em poupança de energia, estamos sobrecarregados de dispêndio, seja físico, seja intelectual) tenha alterado por completo a nossa relação com os ciclos sazonais da natureza, esta estação convida à melancolia, dormência, contemplação e quietude. Por vezes, mesmo à depressão.

Quando éramos pequenos, a avó fazia doces e marmelada, aproveitando as peras e maçãs, os pêssegos e os figos.

E as gamboas, aqueles marmelos grandes e tão duros que não se podem comer ao natural. Todavia, os “frutos da época” são os frutos secos, expoentes de energia concentrada e duradouros, ao contrário dos apetitosos, sumarentos mas rapidamente perecíveis frutos do Verão (meloa, melão, melancia, ameixas…). Os supermercados, com o export-import e a ajuda das estufas, subvertem esta realidade, mas há frutos que nesta época já desapareceram ou cujo preço denuncia estarem fora da estação.

E as vindimas? Quem não olha para as videiras, plenas de cores e matizes, do ainda verde ao mais pungente dos roxos e bordeaux, e anseia por ir até ao Douro, nem que seja em pensamento? É altura do cheiro a mosto, das primeiras queimadas e – não esquecer – de pedir ao sr. Tiago que traga a lenha para a lareira. Um destes fins-de-semana há que gastar algum tempo a arrumar a roupa de Verão nos armários mais altos, despedindo-nos com um “até para o ano” dos fatos de banho e das T-shirts, e convém desencher as bóias e os outros artefactos aquíferos das crianças, retirando “para baixo” a roupa de Inverno, as gabardinas, as botas… e os chapéus-de-chuva.

Aproveitando os dias de tempo agradável, vale ainda a pena passear, escolhendo um percurso bonito e tranquilo, revisitar o mar e ver nele as cores do pôr-do-sol, já com algumas nuvens que surgem, multicolores, a reflectir os laranjas do fim de tarde e a relembrar que os dias são mais curtos – mais ainda quando mudar a hora. Um passeio em espaços naturais (parques, junto a um rio, campo, praia) pode ser o melhor remédio para resolver a ambivalência física e psicológica que se apodera de nós e, ao regressar, “uma lareira já calhava bem”.

“Uma dúzia, por favor, sr. Eduardo. Bem quentinhas!” Felizmente ele está na esquina da Praça de Londres com a Avenida de Paris, nomes que lembram cidades onde o frio já se faz sentir como porventura nunca em Portugal. Mas o sr. Eduardo, ao vender as castanhas, primorosamente escolhidas na sua terra natal, na Beira interior, sorri com uns grandes olhos azuis e neles já se podem antever os gelados que terá na sua banca, a partir de fim de Maio, e que saciarão a sede e aliviarão a canícula no Verão, que vai tardar mas vai surgir… porque se não há Outono sem o Verão que passou, também não haverá Verão sem o Outono em que estamos mergulhados…

Les sanglots longs
Des violons 
De l´automne
Blessent mon cœur 
D´une langueur 
Monotone (1).

Paul Verlaine

Pediatra
Escreve à terça-feira 

(1) “As lágrimas longas/ dos violinos/ do Outono/ ferem o meu coração/ com um monótono/ langor” (tradução livre) – Este excerto do poema “Chanson d´automne”, de Paul Verlaine, foi a senha que desencadeou a invasão da Normandia pelas tropas aliadas, em Junho de 1944, na designada Operação Overlord.