Toda a gente sabe que qualquer trilogia merece ter uma segunda vida em que os capítulos originalmente solitários reaparecem juntos e para sempre inseparáveis. “Essex County” é só mais uma prova desta regra (que terá as suas excepções, esqueçamo-las por agora). Éo épico feito de três outros épicos mais pequenos que começaram a ser revelados ao mundo a partir de 2008 e que agora compõem uma caixa que todos deveriam ter oportunidade de ler, pelo menos uma vez. Depois o mais bonito era ver quem seria capaz de, daí para a frente, ignorar o autor, Jeff Lemire, em particular, e a banda desenhada em geral.
O que torna “Essex County” tão fascinante é a forma como Lemire reinterpreta a sua própria adolescência e a transforma numa desventura que só pode, mesmo na vida real, ter acontecido aos quadradinhos e a preto-e-branco. O título desta caixa (que junta “Tales From the Farm”, “Ghost Stories” e “The Country Nurse”) é o nome da terra onde o autor cresceu. Fica em Ontário, no Canadá, e é uma terra de quintas e miúdos em idade escolar, tractores, celeiros, romances escondidos e – atenção que isto agora faz toda a diferença – famílias que podiam ter uma relação muito melhor mas que não têm.
Não é que Jeff Lemire tenha aqui assinado uma conciliação com a sua juventude. “Essex County” não deve ser entendido como um exercício autobiográfico. Mas convém esclarecer que não surge simplesmente de uma fantasia distante e da imaginação aleatória do respectivo criador. Nada disso. É um genial encontro entre os dois mundos: um tinha de ser o concreto, o que criou memórias e deixou marcas – só assim se justifica este regresso tão sentido ao antigamente –; o outro tem a ver com todas as hipóteses que Essex County, a localidade, oferece.
Não é um estúdio de cinema de uma Hollywood de outros tempos, mas podia ser, estava lá tudo à espera que alguém por ali visse histórias nunca contadas. Jeff Lemire tratou da questão. Em Essex County há segredos com muitos anos que ameaçam ser revelados.Eno centro desta tempestade está um garoto, Lester, que afinal não tem no irmão o suporte que julgava, não encontra em casa a segurança de que precisa e dá por si como uma espécie de vagabundo na sua própria terra. A melancolia de uma comunidade agrícola, abrangente e misteriosa por um lado, personalizada e sentimental por outro. É sempre esse o ambiente que rodeia os três capítulos desta saga, cada um com vida própria, todos eles completos apenas quando estão juntos. Coisas de quem sabe o que faz.
Jeff Lemire nasceu em 1976 e cedo decidiu que o melhor que tinha a fazer era juntar a escrita de histórias ao desenho das mesmas. Artista a solo das coisas da banda desenhada, teve em “Essex County” um momento maior de criatividade e, inevitavelmente, reconhecimento.Depois de ter assinado títulos para a DCComics, foi este ano um dos responsáveis pela renovação de títulos da Marvel como Hawkeye e os X-Men. Sobre estes, é melhor esperar para ver; quanto a Essex County, devíamos todos estar a ler as três histórias neste preciso momento.