Há sempre algo a aprender com gente que não é da nossa terra. Após um SMS com a nossa localização, Rui Dâmaso estende-nos a mão enquanto diz: “Fiquei a saber que este café se chama Cenário de Sabores, não fazia ideia”, referindo--se a uma das esplanadas da praça central do Barreiro, junto ao Parque Catarina Eufémia. Um dos directores do OUT.FEST – Festival Internacional de Música Exploratória do Barreiro, é filho da cidade e prontamente nos agradece pela informação. Cá se fazem, cá se pagam, daí que agora seja a vez de Rui Dâmaso nos mostrar o que desconhecemos. Neste caso falamos de todos os lugares que serão palco do festival que de hoje a domingo decorre no Barreiro, quadro que nos permite criar uma espécie de roteiro em torno destes locais nem sempre prováveis.
Estamos em território margem-sulense, o que significa que em cada cinco ruas, seis têm nomes de resistentes antifascistas ou de uma qualquer ligação a esse tempo. O Barreiro não foge à regra, ou seja, quando Rui, já dentro do nosso carro – o mesmo que nos levou a todos os cantos – nos diz “Esta, como podem ver pela degradação, é a Avenida da Segunda Guerra Mundial”, não acreditamos. Temos quase a certeza de que isto mete luta antifascista e, ainda que Rui nos diga que é conhecida por toda a gente como Avenida da Praia (pela óbvia localização), o nome da avenida é, precisamente, Avenida Bento Gonçalves, em homenagem ao ex-líder do PCP de 1929 a 1942. Nós sabíamos.
barreiro profundo Só não sabíamos que por trás de um incrível mural se escondia a Escola Conde de Ferreira, edifício em reabilitação e que será um dos palcos deste OUT.FEST. A intervenção começou a ser feita antes do Verão – até porque em Agosto fizeram-se aqui sessões de cinema ao ar livre –; ainda assim, as obras não parecem ter acabado. Por um lado, porque a chuva faz sempre das suas em imóveis antigos, por outro porque há três pátios e salas e salinhas por explorar. A Escola Conde de Ferreira está a ser explorada com vista a receber residências artísticas, eventos sociais – afinal, “estamos no Barreiro velho”, como nos diz Rui – e também outras actividades, como o concerto que as Pega Monstro deram por aqui há duas semanas.
Laraaji e o workshop de Eddie Prévost são os convidados de honra desta escola que se estreia no OUT.FEST na sua 12.a edição. “Esperemos que não chova, ou o Laraaji vai ter de invadir uma das salas”, reza o director antes de voltarmos ao carro e seguirmos para o complexo industrial do Barreiro, pela estrada que segue para o Lavradio e que nos leva a outro local onde vai acontecer o crime exploratório: no Museu Industrial da Baía do Tejo. É por estas bandas – por entre um gerador MAN de dimensões e idade bastante consideráveis e ao lado de uma bancada de experiências químicas com tubos de ensaio e afins – que vão actuar os AMM, entre outros concertos.
Paisagem pouco comum para concertos e que aqui se confunde com a história do Barreiro e das suas gentes operárias. Voltando à bancada dos químicos, perguntamos a Rui Dâmaso se não é perigoso ter tanto vidro perto de aparelhos capazes de atingir um enorme pico de decibéis, como amplificadores. “Acho que seria mais perigoso se tentássemos movê-la, aí sim, era capaz de partir”, brinca.
jazz e adao sem eva Uma série de curvas e contracurvas depois estamos em território onde o jazz se assume como patrão. Manda tanto nisto tudo que, no mesmo edifício, há dois palcos que se incluem no OUT.FEST. No piso térreo temos o Be Jazz Café, que acabou de ser remodelado e já não é novo nestas andanças. “Desde 2010 que fazemos aqui a abertura do festival. Já houve neste palco concertos incríveis como The Fish em 2012, ou até um outro do Peter Evans”, conta. Hoje, as honras de primeiro acorde do OUT.FEST ficam para Akira Sakata & Giovanni Di Domenico.
Saímos da intimidade e escuridão do Be Jazz Café para entrarmos na Escola de Jazz do Barreiro, espaço nada indiferente a Rui Dâmaso: “Andei aqui uns breves meses a estudar guitarra, mas depois desisti. Estava mais interessado na prática, a teoria aborrecia-me, mas isto já foi no ano 2000.” Precisamente um ano antes da abertura da escola, como nos confirma o eng.o Cardoso Ferreira, director. “Curiosamente, temos vindo a crescer nos últimos anos, mesmo com a crise. Oque se nota é que temos muito mais crianças como alunos: 50% são até aos 12 anos. Temos 110 alunos e aulas todos os dias no horário pós-laboral.” Tudo dados que colocamos à disposição de Matana Roberts, concerto a acontecer no fantástico salão nobre desta escola.
O melhor para o fim – mais ou menos, não é que o façamos sempre, mas desta vez calhou bem – e o melhor neste caso é a ADAO, sigla para Associação para oDesenvolvimento das Artes e Ofícios. A mesma que ocupou o antigo quartel-general dos Bombeiros Voluntários do Barreiro para criar uma espécie de albergue das artes e que, para o OUT.FEST, tem reservadas três salas com concertos e um palco na oficina para acolher gente como Peter Brötzmann, Caveira, Golden Teacher, Black Zone Myth Chant, Gala Drop, entre muitos outros.
Este não é um recanto desocupado. Tudo está decorado com todo o tipo de manifestação artística, esculturas a partir de madeira velha ou candelabros a partir de papel-alumínio – quando lá for vai perceber do que estamos aqui a falar. É daqueles lugares em que todos gostaríamos de ter o nosso canto para, de quando em vez, nos escondermos do mundo e mergulharmos no que bem nos apetecer. Parece ter sido isso que levou Tiago Sousa, pianista barreirense, a arrendar um ateliê. “O que me fez querer ter este espaço é a troca de experiências. Há aqui gente de todas as formas artísticas, gente com sensibilidade para partilharem ideias contigo ainda que sejam de áreas totalmente distintas. A arquitectura específica também conta, mas um espaço nunca se faz só das suas paredes”, conta. Tal como o OUT.FEST não se faz apenas do seu cartaz.