Alberto Manguel. “O Prémio Nobel não tem qualquer credibilidade”

Alberto Manguel. “O Prémio Nobel não tem qualquer credibilidade”


Na sua vida, só deitou um livro fora, “Psicopata Americano”, de Bret Easton Ellis. “Não o queria na minha biblioteca – para não contaminar o espaço”


Em dia de anúncio do Nobel da literatura, o i publica uma entrevista a Alberto Manguel, escritor, bibliófilo inveterado e amigo de Jorge Luis Borges, um dos grandes injustiçados pela Academia Sueca. O autor esteve em Lisboa para lançar o seu mais recente livro, “Uma História da Curiosidade” (ed. Tinta da China).

“Desde que tenho memória, acredito que a minha biblioteca contém a resposta a qualquer pergunta.” Quem o diz é Alberto Manguel, escritor, bibliófilo e proprietário de uma biblioteca que se estima ter entre 35 mil e 40 mil volumes.
O autor nascido na Argentina (mas de nacionalidade canadiana) esteve em Lisboa para apresentar o seu novo livro, “Uma História da Curiosidade” (ed. Tinta da China), obra composta por 17 capítulos, cada um dos quais coloca uma pergunta que serve de mote a uma reflexão.

Um dos capítulos intitula-se “Onde é o nosso lugar?”. A pergunta adquire especial significado se tivermos em conta que Manguel nasceu em Buenos Aires numa família de ascendência judaica, passou a infância em Israel, regressou à capital argentina, donde voltou a sair aos 21 anos para viver na Europa (Paris, Londres), depois foi para o Taiti, tornando-se mais tarde cidadão canadiano. Há três meses mudou-se de uma aldeia francesa para Nova Iorque.

Filho de um advogado que foi nomeado embaixador em Israel por Juan Perón, Manguel foi criado por uma ama checa fugida do nazismo. Por opção, nunca estudou na universidade, mas ainda assim é dono de uma cultura impressionante que brilha em obras como “Uma História da Leitura” ou “Dicionário de Lugares Imaginários”(com Gianni Guadalupi). Fala várias línguas fluentemente (o inglês e o alemão foram as primeiras que aprendeu) e quando o empregado lhe serve o café responde “obrigado” com um bom sotaque.

Poirot, a personagem de Agatha Christie, disse uma vez que o “mundo está a afundar-se em papéis”. Nunca se cansa de livros? De os ler, de falar sobre eles, de os coleccionar…
Não. [longo silêncio] Somos uma sociedade da palavra escrita e toda a nossa experiência, memória e relação com os outros passa pela palavra. Nas sociedades orais é diferente, há um sentido diferente do tempo e do espaço. Sempre senti, mesmo em criança, que a minha experiência primária vem das palavras… [interrompe--se] Talvez pudéssemos pedir ao empregado para desligar a música. Provoca muita distracção.
[a música cala-se]

Falávamos do excesso de livros.
Poirot – que é uma personagem que aprecio – estava a citar o Eclesiastes: “Não há limite para fazer livros.” Mas não concordo com isso. Nunca há demasiados livros.

As pessoas não lhe oferecem livros de que não gosta?
Eu não me desfaço de nenhum livro. Fiquei sempre com todos os livros que entraram na minha biblioteca. Mesmo os maus. Porque nunca sabemos quando vamos precisar deles. O único livro que deitei fora porque não o queria na minha biblioteca – para não contaminar o espaço – foi o “Psicopata Americano”, de Bret Easton Ellis, que é, na minha opinião, infeccioso.

Nunca sentiu isso em relação a mais nenhum autor?
Mais nenhum. Há autores muito maus que tenho na minha biblioteca. Tenho “O Código Da Vinci”, de Dan Brown, ou um ou dois livros de Paulo Coelho, para dar dois exemplos do que considero ser má literatura.

Mesmo esses, acha que pode vir a precisar deles um dia?
Preciso, de facto. Se falo de Paulo Coelho como um mau escritor, preciso de saber o que ele é, por isso tenho de ter o texto à minha frente.

Sei que a certa altura da vida decidiu dedicar-se sobretudo a reler livros que já leu. Mantém esse hábito?
Penso que é um impulso das crianças e dos velhos. As crianças gostam que lhes contem a mesma história vezes sem conta e os velhos gostam de visitar textos que já conhecem. Isso possui a vantagem de não termos de nos ocupar com detalhes superficiais, com surpresas, sabemos o que está lá e podemos concentrar-nos noutros aspectos em que não tínhamos reparado antes. Muitas vezes assemelha–se a comer aquilo a que em inglês se chama comfort food – um prato que nos deixa satisfeitos. Considero muitos dos livros que releio comfort food. É como visitar um velho amigo.

Mas não se recusa a ler livros novos?
De forma alguma. Leio-os a toda a hora porque tenho de fazer críticas, ou são--me oferecidos por amigos, ou descubro alguma coisa que me interessa.

Disse numa entrevista que “o homem é um animal que lê”. Lembra-se do dia em que aprendeu a ler?
Sim, recordo-me perfeitamente. Conto esse episódio em ”Uma História da Leitura”. Devia ter uns três anos. Estávamos no carro e lá fora havia um cartaz e reconheci as palavras no cartaz. Consegui decifrá-las, já não eram apenas formas. Esse foi o momento em que percebi que já sabia ler. E nunca mais parei.

E qual foi o primeiro livro que leu?
Devem ter sido os Contos de Grimm, algum livro de Enid Blyton ou histórias das Mil e Uma Noites. 

Ainda tem esses livros?
Muitos desapareceram, mas alguns deles ainda os tenho.

Há uma coisa na sua vida que não consigo perceber. 
Só uma? Eu acho que há muitas. [risos]

Quando tinha 16 anos foi trabalhar para uma livraria. Mas o seu pai era embaixador. Porque precisava de trabalhar?
O meu pai vendeu jornais em miúdo para pagar os estudos e a minha mãe era secretária. Em 1948, quando o estado de Israel foi criado, o meu pai era um jovem advogado e responsável pelo sindicato dos vendedores de jornais. Na altura, alguém o levou a ver Perón. E Perón, no calor do momento, decidiu oferecer ao meu pai o cargo de embaixador em Israel, que ainda não tinha sido criado. Eu nasci em Março desse ano, o estado de Israel foi estabelecido em Maio e o meu pai chegou lá por essa altura. Vivemos em Israel os primeiros sete ou oito anos da minha vida. Quando Perón foi deposto voltámos, o meu pai foi preso e ficámos a viver em Buenos Aires durante a minha adolescência. Queria ter dinheiro no bolso para comprar livros e sair com os meus amigos, mas especialmente para comprar livros. Por isso fui trabalhar para a livraria.

Foi aí que conheceu Jorge Luis Borges, que era cego e o contratou para ler para ele. Ler para Borges era diferente de ler para si próprio?
Ler para Borges era ouvir os comentários de Borges sobre aquela leitura. Quando lemos para nós escolhemos os livros, damos uma certa entoação ao texto, descobrimos coisas por nós, reflectimos sobre o que estamos a ler. Nada disto acontecia quando eu lia para Borges. Estava apenas a emprestar-lhe os meus olhos. A escolha do texto era dele, o tom era o dele e, sobretudo, os comentários eram dele. Não era um acto colaborativo – era simplesmente Borges. Ele dizia, “começa”, e eu lia duas linhas e ele mandava-me parar e fazia um comentário, mas o comentário, ainda que fosse dito alto, era para ele próprio, não para mim. Por isso tive esta estranha experiência de ser a testemunha da leitura privada de alguém – e não era qualquer um, mas um dos maiores leitores de todos os tempos. Isso foi um grande privilégio.

Borges alguma vez lhe dizia para ler de determinada maneira ou dar outra entoação, mais assim ou mais assado?
Bom, antes de tudo ele pedia-me muitas vezes para parar para poder fazer comentários. Mas dava para perceber que ele não queria uma leitura interpretativa, queria-a o mais plana possível. Borges tinha certas ideias sobre a leitura, nomeadamente sobre a leitura de poesia. Por exemplo [recita de cor um poema de Borges]: “Ya no es mágico el mundo. Te han dejado. / Ya no compartirás la luna/ ni los lentos jardines. Ya no hay una/ luna que no sea…” A tendência comum é ler a frase pelo sentido, não pela ênfase ou rima. Borges era contra isto. Queria que eu parasse quando a linha acaba para visualizar a estrutura do poema. Ele preferia a forma ao sentido.

Pode descrever-me a sala onde decorriam essas leituras?
Borges vivia num apartamento minúsculo com a mãe. O apartamento tinha uma sala de estar, uma sala de jantar, dois quartos – um para ele e outro para a mãe – e uma cozinha pequena. Eu lia para ele na sala de estar, que era contígua à sala de jantar. Havia um sofá onde Borges se sentava e eu sentava-me numa cadeira de braços. Atrás do sofá ficava a janela para a rua, que tinha duas estantes de cada lado com enciclopédias. Havia outra pequena estante, onde Borges tinha muitos dos seus livros, a separar a sala de estar da sala de jantar, e depois havia alguns livros no seu quarto de dormir. Ele tinha muito poucos livros – uns 500 ou 600. Tinha o hábito de oferecer livros e guardava só alguns por razões sentimentais. Era uma sala muito, muito simples.

Espartana?
Muito espartana. Quando Vargas Llosa era um jovem jornalista e o visitou, disse: “Maestro, como pode não viver num lugar mais luxuoso? Você merece.” Borges ficou furioso com ele e disse: “Talvez seja assim que vocês fazem as coisas no Peru, mas aqui na Argentina não somos ostensivos. Satisfazemo-nos com muito pouco.” Borges tinha uma ética estóica. Acreditava na moderação, na contenção, não tinha interesse em gastar dinheiro em qualquer luxo, fosse qual fosse.

Teve uma polémica com Vargas Llosa e usou palavras muito duras [em 2010 Manguel disse que Vargas Llosa era “um ser humano imundo”].
Não tive uma polémica com ele porque ele nunca reagiu. Fui muito crítico da sua atitude política. Foi muito surpreendente encontrar uma tal contradição entre o homem político e o escritor de ficção [Llosa defendeu que era preferível não julgar os carrascos da ditadura argentina].

E ficou chateado quando ele ganhou o Nobel?
O Prémio Nobel não tem qualquer importância. Perdeu toda a credibilidade. Achei óptimo quando o atribuíram a Tranströmer [2011] ou a Doris Lessing [2007], mas quando o dão a Dario Fo… Ele é um homem simpático, mas essa atribuição torna o prémio completamente destituído de sentido. Em relação a Vargas Llosa, teria preferido que dessem o prémio a Carlos Fuentes, que era, julgo, não só um escritor mais interessante como seguramente um homem melhor. Mas quando vemos que Kafka, Proust, Borges, Joyce, nenhum deles recebeu o prémio…

Você, ao contrário de Borges, tem uma enorme biblioteca. Como estão organizados os seus livros, se é que há um critério?
A minha biblioteca está organizada segundo alguns grandes princípios que têm que ver com a língua em que o livro foi escrito. Por isso tenho secções de francês, inglês, espanhol, italiano, russo ou chinês. Nessas secções linguísticas, todos os livros estão por ordem alfabética, pelo nome do autor. Não estão divididos por género. Por exemplo, a poesia e o teatro de Pessoa, a correspondência, a prosa, está tudo junto. Mas há algumas excepções que criam as suas próprias secções. Mitologia, contos de fadas, teologia, a Bíblia, escritos dos primeiros cristãos, livros de cozinha, policiais, antologias e por aí fora. Todos esses estão separados das secções linguísticas.

Costuma sublinhar os seus livros, escrever anotações nas margens?
Sempre.

Mas não nos mais raros ou preciosos…
Em todos. Para mim, os livros não são objectos sagrados. Eu mantenho um diálogo com o livro e, se não escrevo nele, não posso dialogar.

É você que toma conta dos seus livros, que os limpa?
Sim, sou eu que limpo o pó. Nunca foi um problema.

Toma algum cuidado especial?
Há certas encadernações de pele que tem de se puxar o lustro de tempos a tempos; há capas de tecido que, porque onde eu vivia é muito húmido, ficam com um fungo branco, tem de se escovar.

Viveu em muitos sítios: Buenos Aires, Paris, Londres, Taiti, Canadá. Como faz para deslocar esta imensa biblioteca?
Até há 15 anos vivi, como a maioria das pessoas, em casas pequenas onde não havia espaço para os meus livros. Então mandava-os para armazéns no Canadá. Mas há 15 anos descobri este sítio em França que era suficientemente grande para albergar todos os meus livros, por isso trouxe-os e arrumei-os. Há três meses deixei França e instalei-me em Nova Iorque. Por isso, a minha biblioteca vai voltar para um armazém até arranjar um sítio onde a colocar.

Porque se mudou para Nova Iorque?
Por circunstâncias várias. A burocracia em França tornou-se impossível. E tive propostas de trabalho em Nova Iorque que não podia recusar. Por vezes somos forçados a mudanças. Se a vida se torna impossível num sítio, temos de mudar. Os escritores não recebem uma pensão.

Quando embala os seus livros para irem para o armazém deixa alguns de fora?
Sim, quando fui para Nova Iorque levei aí uns 50 comigo.

Pode dizer os nomes de alguns?
“Alice no País das Maravilhas”, a minha edição do “Quixote”, os “Ensaios” de Montaigne, “A Vida de Johnson” de Boswell, as obras completas de Borges, Dante – claro –, a Bíblia, alguns dicionários. Esses
são os livros que quero ter comigo em qualquer circunstância.

A leitura é uma actividade solitária e as bibliotecas são sítios silenciosos. Isso é uma qualidade que o atrai?
Infelizmente, as bibliotecas já não são silenciosas. Tornaram-se lugares cheios de ruído. Em Nova Iorque vivo num apartamento mesmo, mesmo minúsculo, e andei à procura de um lugar onde pudesse trabalhar. E é muito difícil encontrar uma biblioteca que seja silenciosa o suficiente. As pessoas acham que podem falar, ligam os computadores – os computadores produzem um certo ruído… Não, já não há lugares silenciosos. Na realidade, toda a nossa sociedade tenta abolir o silêncio e luta contra o silêncio o mais que pode.

Uma última questão: tem muitos livros assinados pelos autores?
Sim, muitos. Encaro os livros como objectos e gosto desse contacto.

Ainda bem, porque queria pedir-lhe que me autografasse este exemplar.