O Vaticano está transformado, por estes dias, numa espécie de campo de batalha. Depois de, no fim-de-semana, um padre com funções na Cúria ter assumido publicamente a sua homossexualidade, acusando a Igreja de “homofobia institucionalizada” – um gesto que o Vaticano repudiou imediatamente e que muitos cardeais encaram como uma ofensiva da ala mais progressista da Igreja em vésperas do sínodo –, ontem choveram “ofensivas” da ala conservadora.
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Os cardeais Erdö e Vingt-Trois, com grandes responsabilidades na organização do sínodo que arrancou este domingo, deixaram mensagens explícitas sobre o entendimento da Igreja em relação ao casamento tradicional. André Vingt-Trois, o presidente delegado, avisou mesmo, durante a primeira conferência de imprensa da reunião de bispos, que não haverá “mudanças espectaculares” na doutrina da Igreja. “Se vieram a Roma com a ideia de que iriam regressar com mudanças espectaculares vão ficar desiludidos”, afirmou o arcebispo de Paris. O cardeal acrescentou que tem havido demasiada “pressão mediática” sobre o sínodo – que, até ao dia 25, vai discutir até que ponto a Igreja poderá e deverá abrir-se às nova realidades das famílias. E explicou que temas como o divórcio ou a homossexualidade poderão nem estar na lista das principais preocupações da Igreja. Vingt-Trois foi mais longe e avisou os jornalistas de que não está em causa, no sínodo, “abrir indiferentemente o acesso à comunhão”, mas sim acompanhar as “profundas mudanças” das sociedades.
Não foi o único aviso explícito aos progressistas deixado em Roma ao longo do dia de ontem. Na intervenção orientadora dos trabalhos, o cardeal Peter Erdö, relator-geral do sínodo, reiterou de forma clara qual é a doutrina da Igreja a respeito dos divorciados recasados. “Na busca de soluções pastorais para as dificuldades de certos divorciados que voltaram a casar civilmente, deve-se considerar que a fidelidade à indissolubilidade do matrimónio não pode ser conjugada com o reconhecimento prático da bondade de situações concretas, que lhe são opostas e, por isso, inconciliáveis. Entre o verdadeiro e o falso, entre o bem e o mal, de facto, não há gradualidade”, disse. O cardeal referiu-se depois às uniões entre pessoas do mesmo sexo, rejeitando que possam ser equiparadas a um casamento: “A Igreja ensina que não existe nenhum fundamento para assemelhar ou estabelecer analogias, nem sequer remotas, entre as uniões homossexuais e o desígnio de Deus sobre o matrimónio e a família.”
Já o Papa Francisco – que no domingo também foi bastante duro na defesa do casamento tradicional – admitiu, falando aos bispos, que a Igreja não pode ser um “museu de memórias” e precisa de ter “coragem pastoral” para mudar. Francisco acrescentou, no entanto, que o sínodo “não é um parlamento onde, para se alcançar um consenso ou acordo comum, é preciso negociar, fazer pactos ou assumir compromissos”, sublinhando que o “único método [dos trabalhos] é abrir-se ao Espírito Santo, com coragem apostólica, com humildade evangélica e com oração confiante, para que seja Ele a guiar-nos e a iluminar-nos”. No mesmo discurso, o Papa pediu aos bispos que não se limitem a falar e que, acima de tudo, ouçam o que os outros têm a dizer, não se deixando “intimidar” pelas “seduções do mundo” ou por “modas que passam depressa”.
ataques e contra-ataques No domingo, na missa solene de abertura do sínodo, o Papa Francisco já tinha defendido – e de forma bastante explícita – a indissolubilidade do casamento entre homem e mulher. Na basílica de São Pedro, reafirmou que “Deus uniu os corações de duas pessoas que se amam na unidade e na indissolubilidade”. E acrescentou que o casamento deve ser entre um homem e uma mulher: “Este é o sonho de Deus para sua bem amada criação: a vida a realizar-se na união de amor entre um homem e uma mulher”.
Na véspera, um padre polaco, Krysztof Charamsa, revelou publicamente a sua homossexualidade, denunciando a “homofobia institucionalizada” na Igreja. O Vaticano classificou o caso de “muito grave e irresponsável” e afastou o sacerdote. O padre apresentou-se à imprensa com o seu companheiro e exercia funções desde 2003 na Cúria, na Congregação para a Doutrina da Fé. “Se queriam pressionar o sínodo, podem desiludir-se”, comentou o cardeal-patriarca de Lisboa, em Roma. Em declarações à Renascença, D. Manuel Clemente acrescentou que “o momento leva a especular que há sobretudo uma pressão indevida sobre os membros do sínodo”, avisando, no entanto, que os participantes “já têm muitos anos disto”.
A segunda parte do sínodo – assembleia de bispos de todo o mundo – que o Papa Francisco convocou para debater a relação da Igreja com as famílias das sociedades actuais termina no próximo dia 25. Até lá, serão discutidos no Vaticano temas polémicos e novos para a Igreja, como por exemplo a forma como devem ser acolhidos os homossexuais ou a participação dos católicos divorciados ou recasados nos sacramentos.
As conclusões da primeira parte do sínodo, que aconteceu há um ano, mostraram uma Igreja profundamente dividida em relação a estes temas. Agora, e ao longo de cada uma das três semanas de reunião, serão debatidos diferentes capítulos do “Instrumentum Laboris” (documento de trabalho) que saiu do encontro do ano passado. Esta semana, os bispos e famílias, auditores e especialistas convidados vão estar concentrados no debate sobre os “desafios” que se apresentam às famílias de hoje.