P’ra entrar na universidade
é preciso
prender o humor
na gaiola do riso
ter médias altas
hi-hon, ão-ão
zurrar, ladrar
lamber de quatro o chão
Sérgio Godinho
“Sempre fui contra a promoção de uma integração baseada maioritariamente na humilhação e submissão. Vai contra os meus princípios e sempre disse que nunca iria fazer. A situação foi que, nesta primeira semana de praxes, deixei-me ir, pelo medo… e porque também insistiram para eu ir experimentar.”
Diogo, 18 anos
“Não mudei de ideias em relação ao que achava inicialmente; senti-me humilhada, mesmo que até nem fossem coisas nada de especial. Jogos de conotação sexual, recusei-me a fazer; os outros suportei, mas sempre a sentir-me mal, um mal insuportável.”
Joana, 17 anos
“A questão é que tenho receio de não me integrar, de me cortarem os caminhos de fazer amizades com pessoas mais velhas do curso… tenho mesmo muito receio porque tenho medo de não socializar.”
Catarina, 18 anos
“Os meus pais dizem que eu é que sei, e dizem que na vida profissional e de estudante nem sempre podemos fazer e ter o que queremos. Mas isso é um pensamento submisso só por si, é o que eu acho!”
Pedro, 18 anos
Embora mais associadas ao ensino universitário, as praxes já começaram a entrar nos outros graus de ensino e podem assumir, por vezes, contornos violentos que nada têm a ver, muito pelo contrário, com o ideal académico de unidade e fraternidade.
Em boa parte, estas práticas de praxe datam de há décadas, designadamente em Coimbra, sendo também humilhantes, como um caso que soube de um amigo meu que teve, quando era caloiro, de fazer de cão e passear a “quatro patas”, por uma trela, pela Rua da Sofia, em Coimbra, pela mão de um do segundo ano, e coisas similares.
Mesmo sem chegar ao que é feito em clubes “alfa-pi-ómega” dos Estados Unidos, conhecem-se cada vez mais casos de violência, tortura e terror, porque essas devem ser as palavras que descrevem o que se passa, sem sofismas e eufemismos.
Os que chefiam as praxes violentas são mais velhos, geralmente alunos com grande grau de insucesso escolar mas muito populares, seja pelos que aderem ao seu gangue, seja os outros – a maioria – porque têm medo. Os mais novos, embora não apreciem, calam-se por receio de represálias ou porque querem pertencer à instituição (pensando que é assim que chegam lá) e contentam-se em não serem escolhidos para cenas deste tipo.
“Cada vez que estou no meio de uma praxe, de joelhos, olhos no chão, a levar com os gritos deles e a fazer o que eles mandam, só me relembro de certos tiques de regimes e atitudes absolutistas. Porque é que aprendemos que isso era terrível, se depois temos de suportar esses mesmos regimes para podermos ser profissionais?”
Ana, 18 anos
“Claro que é tudo é ‘facultativo’, segundo eles, mas as circunstâncias em que as coisas são colocadas condicionam-nos muito as escolhas… simplesmente porque a sociedade impõe isto. Acho que quem tira prazer disto conhece-se muito pouco a si próprio porque, caso contrário, não submetia esta ‘encenação a outros’.”
Jorge, 18 anos
Os rituais de passagem ou de entrada em territórios novos são milenares. No entanto, numa sociedade de direitos e liberdades, este tipo de pressão é uma violência e deve ser denunciada, e não encoberta com o pretexto de que “é uma praxe”.
Algumas das praxes mais violentas, com grande grau de ofensa física mas sobretudo psicológica, envolvem simulação de actos sexuais, humilhar e gozar com a cara ou o nome do visado, forçar a ingestão de álcool ou drogas, entre outras “gracinhas”, algumas delas escatológicas. Conhecem-se alguns casos mortais ou quase mortais.
O factor grupo pode ser uma das facetas piores da condição humana. O “não fui eu” e a desresponsabilização são maneiras cobardes de as massas ululantes se vingarem e fazerem por interposto anonimato aquilo que, afinal, desejariam fazer no quotidiano.
O grupo é levado a pensar “descerebradamente” e actua como um único corpo, o que é perigoso, porque as ordens vêm de indivíduos completamente incapazes de ter senso.
Creio que as faculdades têm de ter mão de ferro relativamente a esta prática que não tem cabimento numa sociedade democrática e num Estado de direito, mesmo que os que participam sejam voluntários. É uma das funções de uma universidade defender a dignidade das pessoas, não apenas formar tecnocratas.
Advogo que se expulsem (e não apenas admoestem) os alunos infractores para que as coisas serenem. Mas, como é habitual, tudo é triturado pela notícia seguinte, começam as aulas e os exames, e as praxes manter-se-ão, só vindo a terreiro quando morrer alguém. E, mesmo assim, haverá a desculpa: “Só lá está quem quer”… pois…
é rastejando que se ascende aos tectos?
Sérgio Godinho
Pediatra
Escreve à terça-feira