Nuno Artur Silva. “Ser administrador da RTP é o único cargo público que me passaria pela cabeça aceitar”

Nuno Artur Silva. “Ser administrador da RTP é o único cargo público que me passaria pela cabeça aceitar”


Durante 20 anos à frente das Produções Fictícias, assinou alguns dos melhores momentos do humor nacional. Desde Fevereiro faz parte da administração da RTP, o único cargo público que poderia aceitar.


(Leia aqui a primeira parte da entrevista)

Diz que Poiares Maduro não lhe liga. Mas, em geral, desde 9 de Fevereiro, quando assumiu o cargo, o seu telefone toca muito mais?
Ele já tocava muito nas PF. A grande diferença que sinto é que há um enorme caudal de solicitações. Isso é o mais difícil de gerir. Somos uma administração pequena, somos só três, muito coesos, apesar de mal nos conhecermos antes, e o nosso princípio é de acessibilidade, o que dificulta a gestão das solicitações.

Esta administração está mandatada para três anos.Está a pensar cumprir?
Tudo pode acontecer. O mandato é de três anos e estamos mandatados pelo CGI. Há um novo método que está em curso e parece evidente que seria prematuro interromper sem sequer nos dar o benefício da dúvida. Sobretudo se tivermos em conta que, neste momento, não há contestação e as coisas estão a correr muito bem. Não me cabe fazer futurologia, mas diria que me parecia uma coisa, do ponto de vista político, completamente extravagante. Aliás, nem seria um processo simples. Teria de ir à Assembleia e teria de mudar a lei. Não é como era antes, em que mudava o governo e podia mudar a administração. O modelo que se lançou foi feito precisamente para dar estabilidade aos projectos. Mas estou sempre preparado para tudo.

A política ainda dá audiências?
Sim. O debate entre Passos Coelho e Costa deu grande audiência. Temos de retirar a discussão do quanto é que a RTP fez de audiência em competição com a novela da SIC. Isto é de um estreitamento absoluto em relação a uma empresa pública de multimédia. A RTP é um conjunto de canais, lineares e não lineares, é um serviço de programas global e uma grande estratégia de produção, co-produção e divulgação de conteúdos. É esta rede que é a grande força da RTP. Reduzir isto a um numero é estreitar de tal maneira o debate que é um empobrecimento total do tema.

Isso é um desejo de mudar a forma de ver e pensar as audiências no que diz respeito à RTP, mas no imediato não é assim.
Pois não, mas a forma que existe de ver a RTP é muito redutora. Por exemplo, o papel da RTP no cinema português é decisivo, estamos a investir em filmes e na sua divulgação. Mais, o que fazemos com as comunidades portuguesas no estrangeiro… Ou a RTP2 como um canal realmente alternativo e que mais horas de programação infantil oferece, além de divulgar documentários nacionais e séries europeias que, de outra forma, os portugueses não veriam. E temos também a RTP Play, que hoje em dia é absolutamente decisiva. A RTP corre numa pista própria e o seu papel é mostrar diversidade. Qual é o avaliador que mede isto?

Normalmente é o mesmo que diz que esse discurso que está a ter é uma desculpa para os fracos resultados da RTP1.
Mas o que é um bom resultado? Um bom resultado é ver a big picture, é ver que a RTP, enquanto grupo, nos seus múltiplos canais, está a promover diversidade, novidade e inovação. Qual é o valor de fazer um formato internacional que os privados também têm e ter um milhão de espectadores, mas depois não ficar para memória nem gerar diversidade? Entre isso ou programar uma série escrita por argumentistas nacionais sobre o que se está a passar neste momento na Europa e como isso afecta os portugueses, o que é mais serviço público? Quando optámos por fazer uma linha de produção de séries e não de novelas, mesmo sabendo que fazer séries é mais caro e mais difícil, é porque sentimos que essa é a missão da RTP.

Questionou o valor de fazer um formato internacional, mas ainda agora arrancou mais uma edição do “The Voice Kids”.
É um grande formato de entretenimento, traz rejuvenescimento do público da RTP1. Foi uma opção da direcção de programas, manter os compromissos anteriores com a produtora. A RTP sempre foi mais uma estação de entretenimento ligeiro do que de ficção. Não temos uma tradição de ficção, como nos EUA. Isto explica-se por várias razões, mas a principal tem a ver com o facto de termos importado um modelo dos países sul--americanos, que é a novela, que teve um efeito de eucalipto e secou tudo à volta. O modelo da novela, que me parece perfeito para países de grande dimensão porque tem um efeito agregador extraordinário, num país com pequena escala traz uma conformidade narrativa. E pior ainda porque, em Portugal, estamos sempre a fazer novelas sentimentais. Nunca houve uma novela de temática política. Compete à RTP qualificar a oferta de ficção. E qualificar é abrir o caminho para a diversidade, é subir o patamar da qualidade, valorizar mais os autores e dar menos foco aos apresentadores. Em Portugal pagamos muito mais aos apresentadores do que aos autores.

Portanto, o dinheiro que, no passado, foi gasto em adaptar formatos será realocado na criação de formatos originais?
Não vamos ser absolutistas, mas esse é o nosso princípio geral. Para o ano vamos fazer um formato adaptado e todos os outros serão originais. Dentro de uma grande condicionante: dinheiro. Somos dos serviços públicos europeus com menos dinheiro. Atrás de nós, só a Bulgária, Albânia…

Em 2013 escreveu a Poiares Maduro dizendo que achava que a RTP tinha de dar muito mais importância à programação do que à informação. O que queria dizer?
O sentido do que disse foi que fazer televisão é sobretudo programar. A informação é um serviço e é vital ter uma informação independente e pluralista. Hoje em dia, nesta RTP, as linhas editoriais são feitas por jornalistas, o que se tornará ainda mais evidente com a mudança da RTP Informação para RTP3. O primeiro passo disto, aliás, foi dado quando, logo no início, definimos que não haveria espaços de políticos regulares em antena. Os políticos devem vir à antena para serem entrevistados, mas não deverão ter espaços regulares.

Para si, o espaço de comentário de José Sócrates seria impensável?
Não me cabe a mim dizer isso, mas ao director de informação. Claro que a parte subjectiva é definir o que é um político no activo. Há políticos que, não estando no activo, nunca saíram do activo. E há políticos que fazem de conta que não estão no activo e estão mais activos que nunca. Não temos nada contra os políticos, até achamos que cabe à RTP ajudar a dignificar a sua imagem. Mas era preciso acabar com a promiscuidade.

Nenhum dos seus amigos políticos lhe telefonou, chateado com esta decisão?
Não tenho muitos amigos políticos. Tenho alguns amigos que fazem política, mas não tenho muito amigos políticos.

Esta semana foram apresentadas as principais novidades para a RTP. O que destaca?
A matriz da 1 e da 2 mantém-se, mas reformatámos a Antena 3 e a RTP Informação, que passa a RTP3. A Antena 3 deixa de ser a rádio jovem, que era uma expressão menorizante, e passa a ser a rádio da cultura pop. E é simultaneamente lançada como rádio e canal online. É uma forma de ir buscar novos públicos. Quanto à RTP3, estreia-se dia 5 e é uma mudança total de imagem e um reforço do que é o jornalismo. É o canal da investigação, do fugir do sensacionalismo, do diminuir o peso do futebol e aumentar o peso da cultura – haverá um magazine cultural diário, em prime time, as “Horas Extraordinárias”. São duas das linhas fortes da renovação. Mas também há coisas que achamos que estão muito bem e não vamos mudar, como a Antena 2 e a RTP2.

Disse que querem diminuir o peso do futebol, que foi justamente o foco das discussões entre o governo e anterior administração. Futebol na RTP 1, sim ou não?
Sim, claro que sim. Comprámos o produto premium, a Champions, está comprado. Se esta administração teria comprado por aquele preço? Não. Gastou-se muito dinheiro. Um dos problemas que o director da RTP1 tem neste momento é que metade do orçamento está alocada ao futebol. É bom porque, goste-se ou não de futebol, é o grande espectáculo mundial. Aquele dinheiro deveria ter sido investido em mais reportagem, mais séries, mas documentários. Mas o conteúdo está comprado e agora queremos rentabilizá-lo. É por isso que resolvemos fazer uma grande noite de futebol na RTP1 em vez de na RTP3.

Há pouco sublinhou que, no nosso país, os apresentadores recebem muito mais do que os autores. Mas a verdade é que, em Portugal, os rostos ainda são responsáveis pelo sucesso ou insucesso de um programa.
Cá sempre se valorizou mais a pessoa que, às vezes, se limita a ler o teleponto e a fazer um sorriso, do que o criativo. Também nos cabe inverter essa tendência. Isto tem muito a ver com o facto de a televisão ter ocupado o lugar da rádio e ter-se tornado uma companhia. Daí os rostos terem tanta importância, tornaram-se pessoas lá de casa. Mas falta uma outra dimensão para acrescentar aos rostos e que é a criação de formatos originais. Porque é que os dinamarqueses, que são cinco milhões, com uma língua que só eles falam, fazem o “Borgen” e vendem para 50 países, e nós não conseguimos fazer mais do que novelas em que este não conhecia aquela, apaixonam-se e afinal são irmãos?

Onde é que, no meio de tudo isso, sobra espaço para um formato como “O Preço Certo” e um rosto como o Fernando Mendes?
A RTP tem espaço para tudo isso. Eu venho da cultura pop, não venho da cultura erudita. E o Fernando Mendes é o comediante mais popular do país, há muita gente que o adora. A questão é que a RTP não se pode esgotar no Fernando Mendes. Há vida para além do Fernando Mendes e d’ “O Preço Certo”.

Quem são os rostos indispensáveis da RTP?
Uma pessoa como o Herman é incontestável. Acho que ele evoluiu de ser um grande comediante para ser um grande entertainer. E acho que o Júlio Isidro é uma figura da RTP, um activo da casa, um pioneiro. Ter estas pessoas no ar faz todo o sentido.

E a Catarina Furtado, de quem recentemente se disse que poderia estar de saída?
A Catarina é um rosto que já foi da SIC e agora é da RTP. É uma óptima apresentadora e não há razão para que não fique. Há projectos para fazer mais coisas com ela depois do “The Voice Kids”. Mas seria contraditório da minha parte estar a dizer que estamos mais focados nos autores e agora estar a falar das caras. Os rostos não são o centro da nossa estratégia.

Logo no arranque desta administração o programa “Agora Nós” foi retirado do ar. Uma decisão que foi muito mal recebida, quer pelo público quer pelos profissionais envolvidos. Entretanto o programa regressou à antena. Arrependeram-se?
A situação foi muito simples. Dos seis day times dos canais em sinal aberto em Portugal todos eram em Lisboa. A conclusão que tirámos foi que tínhamos de fazer regressar um dos day times ao Porto, para equilibrar Norte e Sul. Ainda por cima havia um formato no Porto que funcionava muito bem e que foi muito contestado quando acabou, e que era a “Praça da Alegria”. A proposta que o Daniel Deusdado, director de programas, nos fez foi voltarmos a esse formato. Além disto, em conversa com o Herman, decidimos que o queríamos puxar para a noite – para fazer uma sitcom – e portanto tirámo-lo da tarde. A partir daí pareceu-nos lógico fazer regressar a dupla [Tânia Ribas de Oliveira e José Pedro Vasconcelos] do “Agora Nós”, que era forte, mas à tarde.

O processo de entrada na RTP e saída das PF foi marcado por um tweet de João Quadros, em que este dizia “Ainda agora faliu as PF agarrou logo outro tacho”, que levou à discussão sobre uma eventual falência das PF. Logo de seguida o Nuno veio dizer que estava a tentar vender a sua quota. Afinal em que ficamos?
Fui eu que convidei o João Quadros para as PF. Fui eu que lhe dei trabalho no “Herman Enciclopédia” e defendi-o quando a equipa do “Contra Informação” não quis mais trabalhar com ele. Houve um dia que acabou, já chegava. Desde aí que é assim. O que me entristece é que ele esteja consumido pelo ressentimento. Um tipo que tinha um enorme talento e que se tornou um exibicionista do Twitter. Mas não é verdade, as PF continuam activas. Como podem confirmar, nem estão falidas nem eu estou milionário.

Mas vendeu a sua quota?
Ainda não

E está à venda?
Não sei. Chegam-me propostas regularmente. A única coisa que tive de fazer para vir para a RTP foi deixar todos os cargos de administração, mas podia manter as sociedades. Continuo a ser o único sócio das PF. Não tenho nenhuma incompatibilidade.

Reage sempre assim, de forma branda, quando se sente apunhalado?
Não sinto que tenha sido apunhalado muitas vezes na vida. Sei que tenho inimigos, claro, mas não me fazem perder um minuto de sono.

Tem uma bola de futebol aqui no seu gabinete. São resquícios da infância?
Serve para me descontrair. Adorava jogar à bola e jogava muito bem. O meu grande momento de alegria foi no final da 4ª classe, quando marquei o golo da vitória. Joguei futebol toda a infância e adolescência e dava-me uma alegria enorme.

As suas primeiras recordações são sobretudo essas, do futebol?
E da família, da minha mãe, cabeleireira, e do meu pai, ajudante-despachante, e da minha irmã. Lembro-me do Tramagal, onde era a casa da minha avó, e de viver entre Campolide e Campo de Ourique. Tenho a ideia de uma infância muito feliz. Sempre a ler bandas desenhadas, sobretudo o Tintim [tem no gabinete um busto da personagem de Hergé]. Aos 11 ou 12 anos já tinha feito um clube de banda desenhada com amigos. E depois lembro-me da liberdade da adolescência.

E do 25 de Abril?
Sim. Foi a primeira vez na vida que não fui à escola. Nesse dia recordo-me de o meu pai dizer “é desta!” e de a minha mãe dizer “já não vais à guerra”. Fui para a rua com o meu pai e o meu tio. Eles tinham grandes discussões políticas porque o meu tio era comunista e o meu pai era socialista-soarista. Entretanto entrei para o liceu Pedro Nunes e passava os dias a ter conversas filosófico-sonhadoras sobre o que é que ia ser o mundo…

Entretanto chegam os anos 80…
Os anos 80 foram para Lisboa o que os 60 foram para Londres ou Paris. Havia a emergência de uma cultura jovem e pop. O Bairro Alto, os bares, a moda, o Frágil, os jornais, os artistas… Eu era um miúdo com 17 anos quando entrei para um grupo de teatro anarquista, os Mandrágora. Encontrei um papel na rua a pedir actores e resolvi ir, com uns amigos. Passados uns meses estava a recitar poesia surrealista na Voz do Operário. Na altura era anarquista.

Os seus pais davam-lhe liberdade?
Total. Eu era bom aluno. Fiz mil coisas.

E tinha tempo para namorar? Nos anos 80, em Lisboa, parecia que toda a gente namorava com toda a gente.
Namorava, mas eu não era muito promíscuo. Sempre fui o tipo que se dava com toda a gente, mas era aborrecidamente bem comportado. A minha cabeça é que andava a mil. Era um tipo arriscado no que fazia artisticamente, mas socialmente era certinho. Não fumava, era alérgico ao fumo, com dois copos caía para o lado, fumei um charro mas nem travei. Mas depois era divertido e dava-me com toda a gente. Acho que foi isso que me salvou. Lembro-me de andar com poetas como o Al Berto, com jornalistas, com músicos, e de ter sempre projectos. Na altura toda a gente tinha projectos.

Ainda assim, resolveu seguir engenharia. Porquê?
Por causa de um amigo da família. Mas um dia, a minha irmã, que é 14 anos mais velha que eu, virou-se para mim e disse: “passas a vida a ler e ver filmes e vais ser engenheiro?”. Eu tinha 17 anos e pensei que ela tinha razão. Cheguei ao meu pai e disse que ia mudar de curso, para Letras. Ele só me disse que, desde que tirasse um curso, podia escolher o que quisesse. Serviu-me para, aos 22 anos, já estar a dar aulas de português.

Gostava de dar aulas?
Adorava, apesar de ser cansativo. Ainda assim, a verdade é que, durante anos, andei a mandar projectos para a RTP e ninguém me respondia. Mandei para o Herman, para o Carlos Cruz, para o Júlio Isidro… Ninguém me respondia. Até que houve uma pessoa que me apresentou a uma pessoa que me apresentou ao José Nuno Martins. Ele recebeu-me e passados uns meses, quando estava a fazer uma coisa no Jardim Botânico, com músicos e poetas, aparecem-me o José Pedro Gomes e o Miguel Guilherme a perguntar se eu é que era o Nuno Artur, que tinham uns textos meus e queriam saber se eu escreveria para eles, para um programa com o Joaquim Letria, na RTP2. Correu bem e, a dada altura, o José Pedro diz-me que há um gajo com quem ele acha que poderia fazer uma boa dupla – o António Feio. Foi aí que nasceu a dupla, comigo a escrever para eles. O Herman viu, achou que tinha piada e convidou-me para escrever para ele. Nesse momento, tinha uma proposta da professora Teresa Rita Lopes para ir trabalhar na arca do Fernando Pessoa. Pensei que o Pessoa estava morto e que, se corresse mal com o Herman, poderia mudar de ideias. Foi neste momento que passei do mundo da cultura e de uma possível carreira de professor universitário, na qual não me revejo, e virei para o lado dos cómicos. Até hoje, no grupo dos cómicos serei sempre um intelectual, e no grupo dos intelectuais sou o cómico. Sou um inadaptado, mas convivo bem com esse estatuto. Sempre vivi na bipolaridade, sempre estive entre os escritores incompreendidos e os palhaços não respeitados.

Quando deixou de dar aulas?
Durante um tempo conciliei as aulas com tudo o resto, mas um dia cheguei ao meu pai e disse que ia deixar de dar aulas e ia formar uma empresa de escrita. O meu pai só me perguntou: “Vais deixar o vínculo à função pública? Se achas que é o que deves fazer, tens o meu apoio”. E nasceram, em 1993, as PF. Era eu, o Miguel Viterbo, o José de Pina e o Rui Cardoso Martins. Passado pouco tempo começámos a ter muito trabalho e convidámos o Nuno Markl para se juntar.

Há uma fase em que trabalhar nas PF era mais ou menos como ter o melhor emprego do mundo…
Em 1998 foi a época mais gloriosa. No mesmo pátio estavam pessoas como o Rui Cardoso Martins, o João Quadros, o Nuno Markl, o Ricardo Araújo Pereira, o Filipe Homem Fonseca, a Maria João Cruz, a Patrícia Castanheira, o Eduardo Madeira, o Miguel Góis, o Zé Diogo Quintela, o Tiago Rodrigues, o Luís Filipe Borges… Tudo no mesmo pátio. E eu a tomar conta.

Era possível tomar conta desses egos criativos todos?
Na medida do possível… A dada altura deixei de ser escritor para ser editor, director, coordenador e depressa percebi que, para ter controlo sobre aquilo que fazíamos, teríamos de passar a produtores. E depois houve um momento engraçado… Nós começámos por não ser conhecidos, éramos os tipos que escreviam para o Herman, mas depois acontecem os Globos de Ouro, o “Herman Enciclopédia” foi nomeado e tudo mudou.

Porquê?
Só recebemos um convite para mim e mais nada para os restantes autores. Protestei com a SIC, mas eles disseram que era só para os rostos, não era para os autores – cá está a questão dos rostos. E nós contratámos uma modelo que levou um discurso. O programa acabou por ganhar e ela subiu ao palco a dizer que agradecia o prémio em nome das PF, mas que, como os autores eram todos feios, a tínhamos escolhido para subir ao palco, e que sugeria que toda a gente fizesse a mesma coisa. A partir daqui toda a gente conhecia as PF.

Mesmo assim, mais tarde, houve momentos de crise que quase ditaram o fim da empresa?
Houve, claro. Estivemos quase a separarmo-nos todos, numa altura em que já havia muitos projectos individuais. Mas nessa altura transformámos as PF também em agência. Representávamos e produzíamos os Gato Fedorento, o Homem que Mordeu o Cão… Estivemos sempre a evoluir.

Até ao Canal Q?
Exacto. Nessa altura aconteceram coisas surreais como o momento em que o canal tem a proposta de internacionalização e, ao fim de um ano de negociações, fechamos com a HBO para comprar o Canal Q e as PF.

O que aconteceu?
A troika. Um mês antes de assinarmos a troika entrou em Portugal e eles têm um princípio que é não abrir canais em países intervencionados pelo FMI. Também é nesse momento que a administração com a RTP muda e começo a pensar que quero voltar a escrever. Sempre me habituei a essas oscilações da vida. Tivemos altos e baixos, passámos por mil e uma fases. Acho que nem é preciso lembrar a quantidade de comediantes que passaram pelas PF! Fizemos o “Inimigo Público”, o “Eixo do Mal”, o “Contra-informação”, os Hermans todos, o “Programa da Maria”, o “Paraíso Filmes”, a “Conversa da Treta”…

Sente-se uma espécie de Júlio Isidro do humor?
[Risos] Sim. Fui com a Ana Bola escolher, para os Bonecos da Bola, uma humorista, que era a Maria Rueff. Depois fui com a Maria escolher o Nuno Lopes e o Manuel Marques para o programa dela. E lembro-me de estar com a Maria João Cruz, minha companheira das PF, a escolher o Bruno Nogueira para fazer uma coisa chamada “Manobras de Diversão”, com o Marco Horácio, o Manuel Marques, a Carla Salgueiro, a Sofia Grilo e a Sandra Celas. E fui eu que apresentei o Zé Diogo [Quintela] ao Ricardo [Araújo Pereira], no que depois deu origem aos Gato Fedorento.

Como vê os Gato Fedorento actualmente? Um filho que traiu o pai?
Eles saíram para formar a sua própria banda, digamos assim.

Mas já não são o que eram.
Eu também já não sou o que era. Ninguém é, toda a gente muda.

Mas é um projecto que se vendeu aos contratos milionários?
Não vou comentar isso. Eles escolheram o seu próprio caminho e fizeram-se à vida. Eu adorava os Gato Fedorento da SIC Radical. Quando eles apareceram, nas PF houve uma reação quase de competição da parte de outras pessoas que trabalhavam ali. Toda a gente trabalha junta e, de repente, há um grupo daquelas pessoas que se transforma em estrelas. Os outros que estavam ali ao lado começaram a perguntar “porquê eles?”. Com o tempo autonomizaram-se, mas não houve zanga.

A pessoa com quem trabalhou durante mais tempo e em projectos mais marcantes – e que foi responsável por ter deixado de dar aulas – foi HermanJosé. Era difícil trabalhar com ele?
Não. O Herman, no dia em que me contratou, disse-me uma coisa que se manteve inalterável até hoje: “escreve o que te apetece, eu mudo o que me apetece, não discutimos”. Foi uma regra excepcional que apenas existia para o Herman. Com todos os outros discutíamos, barafustávamos, batíamo-nos pelas nossas ideias. Com o Herman sempre houve uma relação de mestre e discípulos. Mas ele nunca mexeu muito nos textos.

Como viveu os momentos em que viu o seu trabalho com o Herman ser alvo de censura?
O episódio da Última Ceia foi na mesma para o ar, mas uma versão envergonhada. O que me chateou foi o sketch que acabou por ir para o ar não ser bom, era uma versão soft. O próprio Herman antecipou que ia haver sarilho, e de facto houve. Se o sarilho ia acontecer na mesma, mais valia ser por uma boa causa, ou neste caso por um bom sketch. O que foi emitido já era um sketch defensivo.

Mas há, ou não, limites no humor?
É uma coisa que cada humorista tem de avaliar. Uma coisa é ser programador e ter responsabilidade de dirigir um canal. Aí há limites legais e da coerência do canal.

Como programador e administrador da RTP passaria o episódio original da Última Ceia?
Completamente! Sem nenhuma hesitação. Mas na altura não foi o Joaquim Furtado, que era o director de programas, a ter problemas com o sketch. A parte boa é que foi daqui que nasceu, mais tarde, a personagem do Diácono Remédios. O Herman disse que era giro fazer qualquer coisa à volta de uma frase que a mãe estava sempre a dizer na sequência desse sketch da Última Ceia e que era “oh filho, para que é que te metes nisto? Tu és um bom artista, não havia necessidade”.

Depois desse momento, voltou a sentir muitas vezes o sabor da censura?
Lembro-me que, quando quisemos editar um livro, o editor não quis incluir esse sketch. Mas a partir de certa altura deixa de haver censura e o que passa a haver são programas que não são aprovados. Por exemplo, na administração anterior da RTP saiu do ar o programa “Estado de Graça” que fazia boas audiências. Nunca ninguém nos deu uma explicação convincente para ele ter saído do ar. Claro que sei que as PF eram persona non grata do ministro da tutela anterior.

Já sabe o que escrever quando lhe perguntam a profissão?
Artista de variedades era a minha resposta favorita. [risos] Neste momento escrevo administrador da RTP. Com muita honra e orgulho. Ser administrador da RTP é o único cargo público que me passaria pela cabeça aceitar.

O que acha que o seu pai diria?
Acho que ele adoraria! Tenho imensa pena que ele já não esteja vivo para ver isto. Mas a vida é assim… O meu amigo que me disse que, ao fim de seis meses, quereria sair porque já não ia aguentar a empresa pública, estava totalmente enganado. Ao fim de seis meses estou ainda mais convencido do que estava quando entrei. E ainda mais feliz.

E mais ou menos obsessivo compulsivo do que sempre foi?
[Ri-se, enquanto aponta para a secretária, cheia de montes de folhas arrumados milimetricamente] O meu amigo psiquiatra diz-me que ter esta característica é das formas mais benignas de enlouquecer. É uma forma de defesa. Como dizia no meu último espectáculo de stand up “os cães delimitam o território fazendo as suas necessidades, eu delimito o meu território com ordens simétricas de arrumação de papéis”. Podia ser pior.