Delação premiada


A delação premiada está para o processo como alguns suplementos e estimulantes de ginásio estão para o corpo humano: podem aumentar rapidamente a musculatura e encher os olhos, mas podem ser perigosos ou mesmo letais


Trata-se de um acordo entre um arguido e as autoridades nos termos do qual aquele tem um prémio ou benefício (atenuação da medida de coação, diminuição ou isenção da pena, etc., ou mesmo um prémio monetário nalguns países) por delatar outros, e às vezes o prémio até aumenta na proporção da eficácia da delação. Sem dourar a pílula, é isto.

Ora, vai por aí uma grande excitação com esta figura, agora que chega do Brasil inspiração para os defensores da eficiência criminal a todo o custo e para os que se entusiasmam com modernices vindas de fora e de acordo com um pensamento politicamente correcto pouco ponderado. Em tempos de superficialidade e propaganda, a delação premiada cai bem, digere-se com gosto e sacia apetites vários. Mas cuidado, pois – como acontece com outras práticas penais – está para o processo como alguns suplementos e estimulantes de ginásio estão para o corpo humano: podem aumentar rapidamente a musculatura e encher os olhos, mas, além de artificiais, podem ser perigosos ou mesmo letais. Nada contra a que se possa dar valor à delação (melhor, à confissão e ao arrependimento livres), desde que com conta, peso e medida; mas estimulá-la, contratualizá-la, hipervalorizá-la e, sobretudo, premiá-la, isso não. Como nos produtos de ginásio, há que ser prudente. E há que ter em vista o que é essencial no processo e na arquitectura leal e democrática do Estado de Direito.

Citemos um escritor, por sinal brasileiro. Rubem Fonseca escreve em “O Balão Fantasma”: “Informante é assim: ouviu dizer, só sabe a metade, a metade que é falsa.” Descontando o exagero e, também, a injustiça das generalizações, diria que é bem possível que o delator premiado só saiba uma metade, a que lhe interessa. Haverá casos em que não, outros em que sim, mas basta o perigo da possibilidade para que estejamos alerta. Fazer as coisas com base em metades tem sempre a deficiência de faltar uma parte e, por outro lado, a metade que está pode ser efabulada, exagerada ou mitificada. O que está cada um disposto a dizer para lhe ser dado o prémio? Fica a pergunta crua, e cada qual responderá no aconchego da consciência. Mas há outros problemas, seja operacionais (a fábula pode enganar a investigação e frustrá-la, triste ironia), seja de eficácia (a delação pode tornar a investigação preguiçosa, apenas sentada à espera de ouvir), seja de ética, pois um Estado decente para punir com autoridade quer-se de mãos limpas e com trabalho efectivo, e não escudado em exercícios de “toma-lá-dá-cá”. Não vale tudo, e quando é o Estado o cultor da libertinagem de valores, então pode estar a abrir a porta ao que se quer combater, contribuindo para a erosão de uma vida pública sã. 

Pensemos e estudemos um pouco mais, antes de nos deixarmos ir em excitações fáceis e ruidosas. Até porque, para além do perigo, talvez não precisemos da modernice vinda de fora. Já há por aí coisas próximas, mas com a diferença de que não são às claras. Nisso, pelo menos, a inspiração brasileira é melhor.

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado 

Delação premiada


A delação premiada está para o processo como alguns suplementos e estimulantes de ginásio estão para o corpo humano: podem aumentar rapidamente a musculatura e encher os olhos, mas podem ser perigosos ou mesmo letais


Trata-se de um acordo entre um arguido e as autoridades nos termos do qual aquele tem um prémio ou benefício (atenuação da medida de coação, diminuição ou isenção da pena, etc., ou mesmo um prémio monetário nalguns países) por delatar outros, e às vezes o prémio até aumenta na proporção da eficácia da delação. Sem dourar a pílula, é isto.

Ora, vai por aí uma grande excitação com esta figura, agora que chega do Brasil inspiração para os defensores da eficiência criminal a todo o custo e para os que se entusiasmam com modernices vindas de fora e de acordo com um pensamento politicamente correcto pouco ponderado. Em tempos de superficialidade e propaganda, a delação premiada cai bem, digere-se com gosto e sacia apetites vários. Mas cuidado, pois – como acontece com outras práticas penais – está para o processo como alguns suplementos e estimulantes de ginásio estão para o corpo humano: podem aumentar rapidamente a musculatura e encher os olhos, mas, além de artificiais, podem ser perigosos ou mesmo letais. Nada contra a que se possa dar valor à delação (melhor, à confissão e ao arrependimento livres), desde que com conta, peso e medida; mas estimulá-la, contratualizá-la, hipervalorizá-la e, sobretudo, premiá-la, isso não. Como nos produtos de ginásio, há que ser prudente. E há que ter em vista o que é essencial no processo e na arquitectura leal e democrática do Estado de Direito.

Citemos um escritor, por sinal brasileiro. Rubem Fonseca escreve em “O Balão Fantasma”: “Informante é assim: ouviu dizer, só sabe a metade, a metade que é falsa.” Descontando o exagero e, também, a injustiça das generalizações, diria que é bem possível que o delator premiado só saiba uma metade, a que lhe interessa. Haverá casos em que não, outros em que sim, mas basta o perigo da possibilidade para que estejamos alerta. Fazer as coisas com base em metades tem sempre a deficiência de faltar uma parte e, por outro lado, a metade que está pode ser efabulada, exagerada ou mitificada. O que está cada um disposto a dizer para lhe ser dado o prémio? Fica a pergunta crua, e cada qual responderá no aconchego da consciência. Mas há outros problemas, seja operacionais (a fábula pode enganar a investigação e frustrá-la, triste ironia), seja de eficácia (a delação pode tornar a investigação preguiçosa, apenas sentada à espera de ouvir), seja de ética, pois um Estado decente para punir com autoridade quer-se de mãos limpas e com trabalho efectivo, e não escudado em exercícios de “toma-lá-dá-cá”. Não vale tudo, e quando é o Estado o cultor da libertinagem de valores, então pode estar a abrir a porta ao que se quer combater, contribuindo para a erosão de uma vida pública sã. 

Pensemos e estudemos um pouco mais, antes de nos deixarmos ir em excitações fáceis e ruidosas. Até porque, para além do perigo, talvez não precisemos da modernice vinda de fora. Já há por aí coisas próximas, mas com a diferença de que não são às claras. Nisso, pelo menos, a inspiração brasileira é melhor.

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado