O que mais surpreende em “O Drible” é como Sérgio Rodrigues – jornalista, crítico e escritor – faz de um livro um gramado. A história cresce na relva, com todo o sotaque brasileiro que o futebol bem jogado pode ter, daí o português transatlântico. E é o que une um pai (antigo jornalista desportivo no fim da vida) e um filho. Um ao ataque, outro à defesa, e uma série de jogadas que se sucedem, na memória e na televisão.
O Mundial de 70 e a melhor equipa do mundo, Tostão e Pelé, os Kopos e o rock carioca, Maracanã e Peralvo, o melhor jogador que nunca vimos jogar. Um drible que é um dérbi de uma equipa só. Sérgio Rodrigues é o treinador e responde às perguntas.
O futebol é bom ou mau para as relações familiares?
Acredito que em geral seja bom, por ser uma linguagem que atravessa gerações com menos ruído que tantas outras. Pais e filhos, avós e netos dificilmente têm opiniões e gostos parecidos em música, política, moda, costumes. Mas podem, duas vezes por semana, se irmanar apaixonadamente em torno de um clube. Não sei como isso se passa em Portugal mas, no Brasil, o futebol é o cimento principal das primeiras alianças entre pais e filhos pequenos. Esse pacto cada vez mais inclui mães e filhas, mas ainda é um fenómeno marcadamente masculino.
No seu caso, na sua família, o futebol é um bom tema de conversa ou gera discussões?
Meu pai era um torcedor meio distante e fleumático do América do Rio, um clube que praticamente desapareceu desde a sua juventude, e nunca foi um apaixonado. Não tentou transformar os filhos em americanos e, se tentasse, não era garantido que conseguisse. Quanto ao meu filho, que tem hoje 18 anos, para mim como para a maioria dos pais brasileiros, era um ponto de honra que torcesse para o mesmo time que eu. Deu certo.
Qual é o seu clube? É um adepto fanático ou moderado?
Sou torcedor do Flamengo, acompanho a maioria dos jogos, mas sem fanatismo. O que tem a capacidade de me deixar fora de mim, desde a infância, é a selecção brasileira quando está bem montada, quando joga realmente bem. Não tem ocorrido com muita frequência.
O futebol e tudo o que lhe está associado é algo muito visceral, muito emocional. Como transformou isso numa história, em palavras, sem bola nem campo?
Não sei se existirá tal coisa, mas diria que de uma forma funcional. “O Drible” é um romance que, por assim dizer, estive escrevendo a vida inteira. Pelo menos, é a sensação que tenho. Desde antes de publicar meu primeiro livro de ficção, em 2000, já o escrevia. E isso não é licença poética, é facto. Tudo começou em meados da década de 1990, quando escrevi um conto sobre um craque dos anos 1960 que tinha poderes paranormais e desafiou a supremacia de Pelé. O conto se chamava “Peralvo” e decidi que precisava ser aperfeiçoado antes de merecer uma publicação. Bom, no fim das contas, transformá-lo em “O Drible” custou-me muitos descaminhos e muitas páginas jogadas fora. Foram 18 anos de trabalho. Trabalho descontínuo, claro, pois nesse intervalo publiquei outros seis livros. Então, creio que a resposta seja: pelo processo de tentativa e erro. Tacteando no escuro. Encontrar uma representação ficcional para a cultura futebolística brasileira que fosse abrangente sem traí-la, que não a falseasse para mais ou para menos, era desbravar terreno virgem.
Há quem diga que este é um livro sobre futebol, outros dizem que é um romance sobre um pai e um filho. Qual das duas categorias escolhe?
Acho compreensível que se diga que é um romance de futebol, é um reducionismo tentador porque há, de facto, uma percepção geral de que a riqueza da cultura futebolística ainda precisa estar mais presente na ficção. Mas é claro que romance nenhum, sendo um romance passável, pode ser “sobre” uma coisa só. O livro encontrou muitos leitores apaixonados entre pessoas que não têm o mínimo interesse por futebol – aliás, o que é gratificante. Sim, concordo que é sobretudo uma história de pai e filho. Um drama de família e um mistério no qual a proeminência do futebol acaba, de certa forma, sendo mais um despiste, mais um drible. É também um modo de contar em miniatura a história do Brasil nos últimos 50 anos.
Teve a ideia de fazer esta história ao rever o lance entre Pelé e Mazurkiewicz, no campeonato do mundo de 1970?
Tudo começou com Peralvo, o mago literal do futebol. Recontar o lance do Pelé no jogo contra o Uruguai em 1970, um dos mais famosos da história, foi algo que me ocorreu bem mais tarde e que foi muito bem-vindo, porque organizou o caos que a escrita do romance tinha se tornado. O facto de ser a abertura e também o fecho da narrativa é eloquente nesse sentido.
O Tostão [jogador brasileiro que fez parte da selecção brasileira no mundial de 70] disse que gostava de ter escrito este livro. Já falou com ele depois disso?
Infelizmente, não. O Tostão é um recluso que raramente sai de sua toca lá em Belo Horizonte e que não gasta palavras à toa. Ter feito tal elogio, certamente o maior que um livro como esse poderia receber, basta. Na época, um de meus editores brasileiros disse que, no meu lugar, colaria na parede a crónica em que o Tostão afirmava aquilo e passaria o resto da vida a olhar para ela com um sorriso besta no rosto. Nunca mais trabalharia. Por algum tempo, pensei em fazer isso. Não deu certo porque tenho filhos para criar.
O que acha da escrita sobre futebol, da crónica desportiva? É leitor? Já foi jornalista desportivo, é um formato que limita, que pode cansar?
A crónica esportiva pode ser boa ou má, é um formato que limita como qualquer formato. No Brasil teve uma fase áurea que coincidiu mais ou menos com o auge do nosso futebol, quando escreviam regularmente na imprensa Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, João Saldanha. É a época, digamos, romântica, mais poética e mais retórica. Hoje, a crónica esportiva e o jornalismo em geral andam mais pragmáticos. O modo como se escreve sobre futebol na imprensa não tem nada a ver com o tratamento ficcional do tema, é óbvio. Por ser uma linguagem muito auto-suficiente, cheia de marcações e clichês inevitáveis, pode até atrapalhar. Mas eu sei que não teria conseguido escrever “O Drible” se não tivesse sido jornalista esportivo. Ter conhecido esse mundo, ter trabalhado com gente como Saldanha, ter participado da cobertura de Copas, tudo isso foi fundamental.
No livro fala de Mário Filho…
Mário Filho era um dos irmãos Rodrigues, dos quais o mais famoso é Nelson, o maior dramaturgo e o maior cronista esportivo brasileiro – que também é personagem do romance. Mário era um jornalista e um activista, um promotor entusiasmado da cultura esportiva como valor cívico. Fundou um jornal, o “Jornal dos Sports”, e liderou diversas campanhas públicas, entre elas a da construção do Maracanã para a Copa de 1950. Por isso, anos mais tarde, deram seu nome ao estádio. É também autor de um épico de não ficção chamado “O Negro no Futebol Brasileiro”, sobre os anos de formação de nosso futebol, que merecia ser muito mais lido do que é. É o mais importante livro de futebol do Brasil. E antes que pergunte: não sou parente daqueles Rodrigues. Pode haver, no máximo, um grau de parentesco espiritual.
Publicado no Brasil, Portugal, Espanha, América Latina, França, Dinamarca. É uma espécie de Liga dos Campeões?
É sempre bom quando um livro seu ganha atenção, quando ele cai nas graças de um número maior de leitores, mas ser escritor no Brasil é um exercício de humildade. Muito difícil que um ego consiga ficar obeso em nosso ambiente de pouca leitura e pouquíssima importância da literatura na cesta de consumo cultural do cidadão médio. O relativo desinteresse do público português pelos brasileiros contemporâneos também contribui para isso. Vivemos numa dieta rigorosa de emagrecimento do ego. O que apresenta alguns problemas, mas tem no mínimo a vantagem de fazer qualquer delírio de vaidade cair no ridículo.
E há uma coisa curiosa: este livro volta a dizer-nos que a relação entre os brasileiros e o futebol é especial, é diferente da de todos os outros. Isso não se pode perder nas traduções?
Não é um livro fácil de traduzir, com certeza. É profundamente brasileiro, mas acredito que os aspectos intransferíveis que possa ter são compensados pelo alcance internacional da mitologia do futebol brasileiro. Ou seja, a cor local acaba sendo um atractivo, em vez de afastar. De todo modo, a paixão despertada por esse esporte é hoje uma língua global, uma espécie de esperanto. Não acho que nós, brasileiros, sejamos tão diferentes assim dos outros países nesse aspecto.
Qual a sua opinião sobre a actual selecção brasileira? Qual o seu jogador favorito?
Neymar é nosso único craque acima de discussão neste momento. Há outros bons jogadores, mas a fase como um todo, dentro e fora de campo, é ruim. O 7 a 1 [jogo do último Mundial contra a Alemanha] não foi e não será assimilado tão cedo. O Brasil precisa se livrar da administração velha e corrupta de seu futebol, modernizar seus clubes e seus campeonatos, trocar Dunga por um treinador de verdade, etc. A consciência de que tudo isso é grave e urgente, de que um esteio da identidade brasileira está sendo carcomido pelos cupins, não é ainda hegemónica, infelizmente. Enquanto não for, nosso futebol continuará em declínio.
Jogou futebol? Era bom jogador? Jogava a que posição?
Joguei muito futebol, mas nunca fui exactamente um talento. Meu irmão era muito melhor que eu. Mas me esforcei, me dediquei, cheguei a ser um centroavante razoável, embora desprovido de habilidade com a bola. Fiz minha cota de gols, mas para driblar sempre fui uma negação, o que pode ser, quem sabe, uma raiz profunda desse livro.
Gosta de algum clube português?
Tenho uma simpatia gratuita pelo Porto.
Crítico literário, jornalista e escritor – o que mais gosta de fazer?
O escritor está no princípio de tudo. Todo o resto está de alguma forma relacionado a isso.
E o que é mais difícil?
A literatura é mais difícil porque, ao contrário de toda a não ficção, não conta com o álibi da informação, do referente concreto. Ou vale por si ou não vale nada.
O DRIBLE
de Sérgio Rodrigues
(Companhia das Letras)