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Tem já milénios a história dos direitos, liberdades e garantias. Qualquer manual de direito político elenca os diversos estádios por que foi passando a construção do homem contemporâneo, repositório de todas as dignidades, de todas as considerações, de todas as protecções que o Estado de direito afirma assegurar-lhe.
Desde uma fase em que o estatuto de cidadania pertencia apenas a alguns, até ao momento em que foi estendido a todos. De um momento em que o estatuto tinha apenas carácter passivo, para outro em que passou a ter dimensão activa. E, depois de tudo à nossa volta serem direitos legislados, de todas as liberdades nos serem asseguradas, de todas as garantias serem proclamadas em constituições, códigos e leis, descobriram-se ainda direitos fundamentais de “quarta geração”. O direito à “felicidade” ou, noutra dimensão, “o direito à busca da felicidade”, para o que contribuiria uma plêiade de direitos sociais… Direitos esses que, logo a seguir, os constitucionalistas vêm lembrar serem apenas “programáticos”… que é eufemismo para “meras declarações, desprovidas de qualquer força vinculativa seja para quem for”.
Por isso, sempre preferi a sinceridade de Paul Lafargue quando defendeu o direito à preguiça. Sempre me pareceu menos naïf que Miguel Reale Jr.
Num mundo assim bom, bonito, saboroso, cheio de direitos cor-de-rosa, de liberdades com sabor a morango, chocolate e baunilha, de garantias com odor a alfazema e menta, porém, chocamos com o inevitável: a realidade!
E nem sequer estou a falar das guerras, da fome, das pestes ou, sequer, do Estado Islâmico. Estou a falar de algo mais básico. Mais à nossa porta. A afectar os nossos amigos, parentes, quando não a nós próprios: estou a falar de casos de injustiça.
Eu, que vivo isto todos os dias, que de ingénuo sobre a hipocrisia do direito julgo não ter nada, vi-me atirado contra a realidade numa reunião com um cliente, homem de ciência que, quanto ao direito, vivia no “País das Maravilhas”.
E tive de lhe explicar que direitos, liberdades e garantias equivalem materialmente, no nosso sistema (ao contrário de outros), a ver o acusador entrar em julgamento pela mesma porta que o juiz, sentando-se ao seu lado; a ver acusadores e julgadores a trabalhar porta com porta, se não em equipa, pelo menos declaradamente em certas fases dos processos. Ficou atónito!
Engasgou-se quando lhe disse que, sendo acusado, teria de esgadanhar-se todo para provar ser inocente. Lembrei-o de que, humanamente, um juiz não pode deixar de ter um “preconceito de verdade” sobre a história que lhe é dada julgar, pois quem escreveu esta última é alguém racional, capaz de verter em texto uma história credível… e ninguém conta uma história propositadamente mal, nem nela se não acredita, só por “maldade”.
Confirmando tudo isto, no dia seguinte ouvi (eu e mais meia dúzia de advogados) um juiz dizer a um arguido: “Então se é verdade o que diz, como é que há este processo?”
Bem visto: num mundo sem sabor a chocolate e baunilha e sem odor a alfazema e menta, “se há processos, é porque há culpados”!
Advogado
Escreve à sexta-feira