Uma caneta de um restaurante em Viana do Castelo serve de cartão-de-visita para encontrar embarcação rumo à Figueira da Foz, terra de vasto areal e de apanhadores de polvo.
A viagem começa em nós e termina quando paramos de sonhar. Por vezes, o branco das folhas onde escrevo estas crónicas parece cobrir-me, não de neve, mas de espuma do mar. Fico ofuscado com tamanha brancura, sentado no caderno onde anoto tudo, a boiar nas águas do Atlântico. Esse caderno seria o navio desta viagem. As vivências têm sido tantas que nem sempre sei por onde começar. Isto tornou-se enorme, tão grande como dar a volta ao mundo.
O baque das ondas que me tem acordado entranhou-se nos meus ouvidos e o ritmo das marés está compassado com o bater do coração. Sinto o aroma fresco das algas embrenhado nas narinas e na roupa. Vivo, por isso, cada dia com a máxima intensidade, por tão feliz me encontrar.
A viagem começa em nós e só termina quando paramos de sonhar. Acho que estou longe do fim. É como se procurasse uma coisa que não existe, mas que me empurra para a fazer. Por isso é que registo a costa em diferentes formatos, para um dia, quem sabe, descobrir essa coisa. Tem a ver com a nossa identidade traduzida nestas crónicas, diluída nas aguarelas que pinto e com as fotos e sons da costa. Tudo isto com o oceano Atlântico sempre presente.
O HOMEM DA CANETA
Estou há demasiados dias na ria de Aveiro. Não tem sido fácil apanhar boleia para sul. Desenganem-se quando julgam que me basta hastear o polegar e já está… nem sempre há embarcações a viajar de porto para porto de pesca. No caso dos pescadores da costa, ficam normalmente ao largo de onde atracam todos os dias.
Desta vez tudo começou nos correios: estou a enviar uma maré de postais para amigos e familiares quando sou interpelado por um senhor que me pergunta se tenho uma caneta. Vasculho a mochila e num acto de magia, no meio daquela confusão, encontro-a. A caneta era uma qualquer. Foi ali parar por acaso, como acontece com os isqueiros e afins.
“O senhor é de Viana do Castelo?”, pergunta-me o homem que me devolve a caneta. Sem perceber, respondo que não e adianto-me: “Passei por lá também. Nos últimos dias tenho estado por aqui. Quero ver se apanho uma boleia para a Figueira da Foz numa embarcação.” “Eu tenho uma traineira. Por acaso vou para lá. Mas vou hoje”, diz-me o homem. Começo a pensar com os meus botões: e que tal se me levasse?
A conversa desenvolve-se depois de perceber que a caneta era de um restaurante onde comi em Viana do Castelo. Provavelmente, pedi-a para dar o famoso número de contribuinte da factura e não a devolvi.
O problema deste encontro inesperado está na capitania: é obrigatória a autorização desta entidade para ir numa embarcação de pesca profissional. A multa é gorda. A esta hora, já não dá. A capitania já encerrou. Sem poder tratar da autorização, desisto e despeço-me com pena de perder a boleia.
Uma hora depois voltámos a cruzar-nos, inesperadamente: eu a cirandar pelo porto de pesca, à socapa, a ver se me safava, e o “homem da caneta” a transportar umas caixas para a traineira. Não sei se foi por causa do meu olhar de cãozinho triste e molhado ou se por generosidade, ele diz--me o tão esperado: “Oiça lá, quer mesmo ir? A gente vai daqui a pouco. Amanhã quero lançar as redes de madrugada e assim já lá estou. Olhe que eu não pago multas a ninguém. Você vai, mas eu não sei de nada!”
Num ápice, fico com a garganta seca, sem saliva para engolir. Começa uma batida, diluída pelo corpo, a bater, a bater. Até na boca sinto um bombear forte de nervosismo. Aceito o desafio e lá fomos.
A embarcação parte ria fora, para o mar. Vou sentado, encostado à amurada, a estibordo, à espera de um final feliz. O calor do interior da ponte chocalhou-me a boa disposição, sugerindo--me um enjoo. Quero evitar a tragédia do vómito. Felizmente ainda não fui atingido por essa fatalidade da navegação.
Vão cinco pescadores. O mestre, que é o homem da caneta, vai de olhos postos no mar. O trabalhar dos motores embala-me, como que a relaxar-me para eu não ir tenso. Não se conversa. Estão todos ansiosos por desembarcar e ir descansar. Amanhã é dia de faina. Ouve-se mar, motores e uma rádio qualquer a espetar-nos melodias nos ouvidos.
A viagem é feita em paralelo à costa, mas a uma distância que não permite destrinçar detalhes. Avisto, ao longe, o areal metido como uma pincelada sobre a longa floresta que vai até ao Cabo Mondego. Pouco cimento, pouco cimento. Quase nenhum. Já na sombra da noite, desvela-se Quiaios e o farol altaneiro.
A saliência do promontório roqueiro parece esconder a Figueira da Foz a quem vem de norte. Afastados da costa por causa das rochas sorrateiras, vamos dando uma curva longa para ajeitarmos a proa em direcção à entrada da foz do Mondego. Começo a ver as luzes dos candeeiros de rua e das cozinhas das casas, onde as famílias preparam o jantar.
Navegamos contra a corrente do Mondego para chegar ao porto de pesca. Os valentes molhes, expostos à impetuosidade das ondas, desenham--nos o percurso. A bombordo somos recebidos por uma pintura do graffiter Pantónio, com aqueles bichos todos em movimento que nos relembram as agitadas marés que se fazem sentir durante o ano. A estibordo ainda consigo divisar a praia do Cabedelo. A esta hora, ainda estão por lá alguns surfistas a aproveitar as excelentes ondas que se formam o ano inteiro.
Chegado a terra, devolvo o colete e meto-me a milhas do porto, antes que a viagem fique mais cara.
Nota: Espero descrever tudo no livro que pretendo publicar. Nesta crónica, deixei a minha palavra naquela embarcação: não revelo a identidade de quem me levou para a Figueira da Foz.
POR UM POUCO DORMIA AO RELENTO
Meto-me a pé em direcção ao farol do Cabo Mondego. É lá que vou ficar hospedado nos próximos dias. Ainda é bastante afastado do porto de abrigo. A fome ainda não me bateu à porta. Estou disposto a palmilhar. Atravesso a Figueira da Foz. Algumas construções apalaçadas relembram os tempos em que esta cidade era procurada pelas elites de Portugal e Espanha. Falo-vos de um dos principais destinos de Verão antes da popularização do Algarve.
O Forte de Santa Catarina, encimado por um velhinho farol vermelho, assinala outros tempos em que o mar chegava aqui. Agora, parece que se vai afastando, aumentando a praia da Figueira, por causa do molhe norte do rio. É o maior areal urbano do país. Salvaguarda espaço
Para todos os veraneantes
Da Torre do Relógio (famosa construção de 1942), situada na marginal, quase nem vejo o mar.
As décadas de 40, 50 e 60 ainda estão patentes nas ruas. Remetem-me para o tempo da “outra senhora”. O casino retoca o charme da cidade. Desde 1927 que tem licença de jogo. É o mais antigo da península Ibérica.
As construções das duas últimas décadas são como areia para os olhos, não valorizam em grande parte a cidade. Entretanto, passo pela praia de Buarcos, que é o prolongamento da Figueira da Foz, e começo a subir a serra da Boa Viagem para chegar ao farol. Bato à porta, com as lágrimas de suor a escorrer no corpo. O simpático faroleiro abre-me a porta: “Boa noite, bem-vindo! Já estava para ir dormir. Esteve quase a ficar na rua.”
NA SERRA E NO MAR
Abro a janela para tomar um duche com vista para o mar. O sol radiante abrilhanta o esbelto farol. As traineiras andam de um lado para o outro, à pesca. Uma delas é a do senhor da caneta. Alguns cargueiros estão à espera de autorização para atracar no porto da Figueira da Foz.
Daqui, da serra da Boa Viagem, vejo o mar e a longa mancha verde de árvores que se prolonga até Mira e muito mais. Acoito-me no Abrigo da Montanha. É edifício da autoria do arquitecto Raul Lino. Nem sempre viu bonança na sua conservação. Não percebo se está aberto ou fechado ao público. Vejo apenas mesas embelezadas por pratos e copos, a dar para o mar, com grandes janelões a proteger das rajadas de vento que também por aqui passam.
Enquanto degusto um charuto proveniente da Nicarágua, saboreio o poema de João de Barros, escrito numa rocha espetada na terra: Aquele mar meu confidente de horas idas tudo escutava e adivinhava do meu pueril e ingénuo anseio.
Parto com o meu fôlego de caminhante e deslumbro-me com a tranquilidade da serra. Passo por lagos escondidos no bosque e inspiro os ares da praia de Quiaios e da Murtinheira. Foram esventradas por construções de cimento que raramente justificam uma foto para bem recordar. A cimenteira sobranceira ao mar transforma esta parte da serra da Boa Viagem, a dar para o farol, num ambiente lunar. As tripas da serra estão à vista. É uma imagem cinzenta, sem vegetação, morta pelo progresso da indústria. Nem sempre se vislumbra um horizonte perfeito como tem sido esta grande viagem.
OS HOMENS DO POLVO
Enquanto caminho no areal de Buarcos cruzo-me com pessoas deitadas como lagartos ao sol e homens que se fazem às rochas para apanhar polvo. A maré começa a encher. As ondas agigantam-se e tornam-se maiores que estes caçadores. Sinto o perigo à distância de um disparo da máquina fotográfica. Aproximo-me deles, devagar, para não me estranharem. Meto conversa com o senhor Xavier.
A pele tostada pelo sol, que quase lhe incendiou o bigode, esconde os lábios que pouco se mexem quando fala. O padrão dos calções que veste não combina com o da camisa. As mãos estão encrespadas como as rochas que se espalmam pelo mar adentro, tisnadas em fatias. O polvo que apanha é para ganhar mais uns trocos. A família precisa deste contributo para viver. Peço–lhe a bolsa de tinta do polvo, apesar de eu preferir a do choco. A tinta é negra e entranha-se bem no papel. Aproveito-a para retratar este homem que gentilmente ma ofereceu.
Recordando os meus tempos de menino, quando vinha à Figueira nas visitas de estudo, vi juntas de bois a puxar as embarcações em forma de meia--lua da arte xávega, que em tempos era praticada nestas praias. Arrasto comigo as imagens dos barcos com homens a largar as redes, para depois as puxarem em terra.
“Vinha sardinha e carapau com fartura” diz-me o homem do polvo, que também fez parte destas pescarias. As memórias que tem diluem-se paulatinamente com o passar do tempo. Espero que a pintura com a tinta do polvo que lhe ofereci, em que retratei os pescadores de arte xávega, o ajudem a aliviar a saudade que se manterá até ao desfecho da sua vida de terra e mar. J