1. Talvez o título deste texto não devesse repetir o da semana passada, mas a reflexão que quero prosseguir é a mesma.
«Que horas ela volta?» pode ser, afinal, a pergunta – como metáfora – que se impõe quando se indaga da vontade dos que dizem querer mudar a vida.
2. Têm aparecido, recentemente, alguns romances que mostram já o caminho que a vida de muita gente teve de assumir por efeito das opções políticas dominantes na Europa.
Le Printemps des Barbares, do suíço Jonas Lüscher, narra o comportamento selvagem de um grupo de yuppies britânicos em férias, ante os efeitos súbitos da crise no seu modo de vida egoísta e deslumbrado.
Dove Eravate Tuti, escrito por Paolo di Paolo, fala do que sobrou da Itália de Berlusconi.
Um e outro abordam os efeitos das ilusões hedonistas incutidas pelo neoliberalismo e que findaram, abruptamente, com a crise iniciada em 2008.
3. O semanário Le Point publicou, entretanto, uma importante e longa entrevista com Régis Debray a propósito do seu último livro, Madame H.
Nela Debray fala também – mas não só – da utopia neoliberal e da situação que impôs aos europeus e, ainda, de todos aqueles que, à esquerda, com ela flirtaram embevecidos.
Diz Debray, a propósito da França, quando lhe perguntam se a esquerda perdeu a batalha das ideias, «(…) a esquerda tem tanto medo de ficar encalhada e anseia tanto pelo poder, mesmo sem ideias e em detrimento das ideias sem poder, que faz de camaleão».
Talvez resida aqui, de facto, um dos problemas de quantos se propõem mudar a vida.
A questão pode, contudo, ser mais complexa.
3. Face ao vazio deixado pela crise económica e social do neoliberalismo, podemos constatar várias ordens de atitudes, de revoltas e de revoltados:
As dos que progrediram anteriormente com o estado social e perderam, depois, quase tudo: o trabalho, as reformas e a possibilidade de um futuro melhor para os descendentes.
As dos que rejubilaram com a revolução neoliberal e que, agora, regrediram, sonhando apenas voltar a ter o que perderam.
A dos que pouco ou nada perderam – alguns até ganharam – e tudo querem preservar.
Só os primeiros e os segundos estão verdadeiramente revoltados com a actual situação.
Acontece que os segundos têm, sobretudo, medo do que sucedeu aos primeiros – tudo perder – e, mesmo que revoltados, receiam mudanças.
Para mudar a vida, será, contudo, preciso mobilizar a revolta de uns e de outros: os primeiros e os segundos.
Para canalizar tais revoltas para um projecto consistente, é preciso, no entanto, voltar a definir uma ideia que suplante as expectativas imediatas de cada um, para as transformar num projecto de todos.
É necessária uma ideia clara que explique o impasse suicida em que se encontram os segundos e permita a todos – também aos primeiros – compreender que é imperativo um outro tipo de vida.
A utopia neoliberal era falsa, a sua perpetuação será fatal.
É isto que muitos dos que dizem querer mudar a vida, recusam ainda assumir frontalmente.
Reivindicam, enganados e enganadores, apenas o que antes foi alcançado – designadamente durante a revolução neoliberal – como se de um projecto realista, justo e solidário se tratasse.
E não era.
Só, pois, uma ideia generosa – que, como diz R. Debray, não passa apenas por cannabis e casamentos para todos – pode de facto ser de novo mobilizadora para um projecto de mudança.
Só ela pode permitir, sobre os destroços amargos do neoliberalismo, refazer um projecto de vida mais humano e solidário.
Escreve à terça-feira