"Ainda estamos aqui? Apenas para sofrer? Todas as noites, consigo sentir a minha perna… o meu braço… até os meus dedos. O corpo que perdi… os camaradas que perdi… não pára de doer… é como se ainda estivessem aqui.” — Kazuhira Miller.
Metal Gear Solid é dos poucos exemplos de uma franquia verdadeiramente autoral, pelo menos no mercado AAA. É uma discussão sempre polémica no caso de uma indústria com orçamentos de milhões e equipas de centenas de pessoas, mas a verdade é que apesar da contribuição de outros notáveis (onde se destaca Yoji Shinkawa), MGS é ligado ao nome de Hideo Kojima, não fosse o homem criador, diretor, escritor, designer e uma presença omnipresente nos créditos que a série tão bem exibe.
Este Metal Gear Solid V: The Phantom Pain (Metaru Gia Soriddo Faibu: Fantomu Pein) assume assim uma importância particular para os fãs, já que a confirmar-se o irrevogável conflito entre Kojima e a Konami, será o último MGS do produtor. Os eventos cobrem o período entre Peace Walker e o primeiro Metal Gear, este último ainda na velhinha MSX, nos tempos em que a série estava longe do protagonismo que tem hoje.
Começamos em 1984, nove anos depois dos eventos do prólogo Ground Zeroes, cujo poderoso final deixa Snake muito mal tratado, em coma, depois do grupo Militaires Sans Frontières, também conhecido por Outer Heaven, ser totalmente destruído pela misteriosa divisão XOF, numa operação tipo “Cavalo de Tróia”. A abertura de The Phantom Pain é fabulosa, provavelmente uma das melhores que o meio me apresentou até hoje e certamente a mais poderosa da série. Em poucos minutos, ultrapassamos as etapas da recuperação de Snake, somos gozados pelo jogo, vítimas de uma tentativa de assassinato, auxiliados pelo misterioso Ishmael, aprendemos os controlos básicos e ainda tomamos contacto com um elemento sobrenatural capaz de confundir os mais acérrimos fãs. Nada mau para o que tradicionalmente é conhecido como… tutorial.
“o jogo segmenta as missões, de modo a que possamos participar numa aventura mais próxima dos Metal Gear de sempre.”
Eventualmente, Snake é resgatado por Revolver Ocelot, acabando algures pelo Afeganistão, onde o velho compatriota e líder do extinto grupo de mercenários Benedict “Kaz” Miller se encontra aprisionado às portas da morte. Só depois desta missão de introdução é que o jogo se abre verdadeiramente no tal mundo aberto que tanta tinta tem feito correr. O espaço de ação, o círculo mágico de MGS5 se quiserem, acontece em duas áreas, Afeganistão e Angola. São de facto duas áreas abertas, no sentido em que as podemos percorrer sem constrangimentos, encontrando imensos pontos de interesse pelo caminho. Ainda assim, o jogo segmenta claramente as missões, de modo a que possamos participar numa aventura mais linearmente próxima dos Metal Gear de sempre.
Não somos confrontados pelas frequentes e gigantescas cinemáticas que caracterizaram a série, com a exceção dos finais (reparem que o plural foi intencional), que ainda deram para matar um pouco das saudades da cinematografia Metal Gear, essa sim, algo ímpar no meio. Parece que Kojima escolheu sair [da série], oferecendo aos jogadores aquilo que faltava e que um certo segmento do público foi pedindo ao longo dos anos – menos cinemática, mais gameplay. Não se pense ainda assim que se esqueceu de onde vem, The Phantom Pain é muito mais do que uma obra de ficção científica \ espionagem, a história principal serve de pano de fundo, entretenimento e é responsável por ligar as pontas e nos trazer o final “padrão”. No entanto, está carregada das nuances e referências que provam que há algo mais a dizer, sobre a franquia e sobre o mundo.
A questão é que para encontrarmos a resposta a todas as questões, temos à nossa frente várias dezenas de horas de jogo, como se Kojima tivesse decidido provocar aqueles que insistem em julgar o valor de um videojogo pela quantidade de conteúdo. “Aqui tens a resposta, mas terás de ultrapassar um longo calvário até a vislumbrares”. Felizmente, a qualidade do gameplay é inegável, claramente no topo do que os videojogos de ação na terceira pessoa modernos são capazes. Num título furtivo isto seria muito importante, já no caso de um jogo que pretende entregar totalmente o agenciamento ao jogador, era obrigatório.
“agenciamento diz respeito ao nível de controlo que o “agente” tem sobre o mundo”
O agenciamento diz respeito ao nível de controlo e manipulação que o “agente” tem sobre o mundo, de jogo neste caso. Claro que este é maioritariamente ilusório e escondido pelos sistemas de jogo, no entanto, a forma como o mundo de The Phantom Pain se comporta, juntamente com as opções de abordagem que temos ao dispor, transmitem-nos uma enorme sensação de controlo. Nunca senti que existia uma forma universal ótima para ultrapassar um determinado problema e nunca me senti tão livre num Metal Gear.
Já escrevi isto antes, ninguém gosta de “gameplay stealth”, o que é altamente gratificante para os nossos cérebros, é termos escolha para uma abordagem stealth. Esta imprime individualidade à ação, força-nos a tomar séries de decisões, muitas vezes instintivas, mas que transmitem um domínio e mestria muito próprios. Combinada com a fidelidade do meio, uma sonoplastia poderosa e uma ligação transparente entre o jogador e o avatar, só possível com um gameplay de topo, representa a receita para uma experiência de que só os videojogos são capazes.
É verdade que existe alguma inconsistência de ritmo em Metal Gear Solid V, até porque não é possível manter o poderoso nível de urgência que experienciamos, por exemplo, nos momentos em que Snake é confrontado com um exército de crianças, uma referência a um tema real muito sério. Também podemos identificar a reciclagem de modelos de edifícios e inimigos, no entanto, as possibilidades de abordagem são de tal forma ricas, a inteligência artificial dos inimigos, que ajusta os seus comportamentos em relação às ações do jogador, a atenção ao pormenor e a ridícula quantidade de armas e dispositivos com que podemos “brincar”, servem para justificar uma experiência de jogo ímpar nesta geração e que facilmente se pode estender durante anos, até porque ainda há um modo online a caminho e muitas FOB para invadir, mas já lá vamos.
Além da tradicional escolha entre o método furtivo e o ataque frontal, somos inundados de imprevisibilidades, como quando atingimos um cabo elétrico acidentalmente, só para o vermos a "fritar" um inimigo pelo caminho. A pistola de água, uma “arma,” que em teoria, não serviria para mais do que umas gargalhadas, pode ser usada para anular o sistema de luzes de um campo. A já célebre caixa de cartão, que agora até conta com um rico sistema de upgrade e claro, o Fulton, que conceptualmente serve para alimentar o novo grupo de Kaz, Ocelot e Snake, mas que na prática, é um convite à criatividade, para derrubar um helicóptero enviando um contentor num balão em sua direção ou para escapar rapidamente de uma situação explosiva, abraçando o contentor em direção aos céus, quer dizer, à Mother Base.
“as possibilidades de abordagem são de tal forma ricas, que servem para justificar uma experiência de jogo ímpar nesta geração…"
Em cima de tudo isto temos um ciclo dia/noite e um sistema climatérico dinâmico, eles próprios uma consideração estratégica. Não só devemos considerar a melhor altura para atacar um determinado objetivo, como somos forçados a adaptarmo-nos à imprevisibilidade do meio, durante as tempestades de areia, que nos cortam a visibilidade e convidam os guardas a procurar refúgio, ou nas chuvas torrenciais em África, que enchem o terreno de lama e contribuem para efeitos visuais incríveis, num jogo que visualmente, é quase sempre arrebatador.
Confesso que o meu método preferencial de abordagem foi quase sempre o furtivo, utilizando para isso a arma tranquilizante, que com um headshot, adormece instantaneamente um inimigo. Este método parece-me inclusive promovido pelo próprio jogo, se considerarmos o modo Reflex, que acontece quando somos detetados por um guarda ou câmara de segurança, ativando um momento em câmara lenta, que nos deixa reagir e evitar o alerta global. É um design que visa claramente limitar a frustração, minimizando o perigo de erro, de modo a que o jogador não sinta que ao mínimo percalço, a sua opção de abordagem cairá por terra.
Importa ainda salientar que Snake não está sozinho na sua busca de vingança pelo que sucedeu no final de Ground Zeroes, mas tem um exército inteiro atrás de si, homens e mulheres que o veem como uma lenda. Os mais importantes são os companheiros em quem confia no terreno (os Buddies): O DD, um cão que podemos resgatar ainda bebé, um cavalo (Diamond Horse), ideal para a rápida navegação pelo extenso terreno de jogo, o Walker, um robô bípede desenvolvido por um tal de Huey Emmerich e finalmente Quiet, uma sniper cuja apresentação não me atreverei a revelar, mas que conta com uma caracterização peculiar e altamente contrastante, por ser ultra sexualizada (vejam-na a tomar banho para perceberem), mas ao mesmo tempo, uma figura altamente poderosa, que não se exclui de esmurrar quem lhe falte ao respeito. É também muda, e isto poderia abrir espaço a especulações sobre o que queria o jogo dizer com isso, mas a verdade é que tem um bom motivo.
Em relação às FOB (Foward Operating Base), que são uma segunda Mother Base que existe num espaço persistente e acessível a outros jogadores em busca dos nossos recursos e pessoal. Estas são como uma extensão do modo online, convidando a missões de emergência para a defender contra um outro, claramente falso, Big Boss. A principal vantagem de investir neste modo tem a ver com os recursos adicionais que daí retiramos, no entanto, confesso que não fiquei particularmente atraído pela ideia de repetir o grind que tinha vindo a realizar no single-player e que já por si é exagerado.
Parece-me um extra designado para o futuro, especialmente depois de esgotado o modo principal e provavelmente quando o MGS Online ficar disponível, a partir de outubro.
A abordagem de Hideo Kojima ao mundo aberto não é, como muitos vaticinavam, revolucionária. É um mundo aberto, mas cujas mecânicas desafiam o jogador a dominar e maximizar as suas habilidades em espaços constrangidos. O que o jogo faz de excelente é carregar estas áreas de uma notável imprevisibilidade, onde o “agente” pode utilizar um imenso leque de ferramentas, sentindo-se verdadeiramente na pele de Big Boss (ou será?). A primeira resolução está notavelmente caracterizada, mas tinha potencial para mais. Os fãs poderão encontrar o "verdadeiro final", juntamente com outras respostas às imensas pontas soltas que o jogo deixa pelo caminho, terminando as missões com um rank superior e completando as múltiplas missões secundárias. Kojima decidiu esconder o melhor por detrás da quantidade, a mesma que tantas vezes, é arma de arremesso na indústria.
VEREDITO
Ao abrir, Metal Gear faz questão de relembrar que se trata de uma obra de ficção, não é por acaso, é assente no passado, mas trata-se de um produto atual, que não hesita em apontar fileiras a temáticas muito sérias. A forma como se abre a diferentes interpretações é um dos seus grandes trunfos, as pessoas vão encontrar novas perspectivas acerca da história de Metal Gear Solid V, anos depois do lançamento. Diria que Metal Gear Solid é um pouco como a guerra: “está em permanente mudança”, nós apenas lutamos para o conseguir acompanhar.
9.8 / 10
*Artigo escrito por Aníbal Gonçalves, da IGN Portugal.