Mais de 15 anos depois, Isabel Abreu é visita recorrente destes corredores, onde todos a conhecem, onde é quase sempre “Isabelinha”. Desta vez, a culpa é das três tragédias gregas (“Ifigénia”, “Agamémnon” e “Electra” – em cena até 4 de Outubro, no Teatro Nacional D. Maria II) de Tiago Rodrigues, o senhor que detém uma percentagem de culpa na sua essência de actriz. Nasceu em Arronches, no Alentejo, há 37 anos, palco improvisado das suas primeiras peças – era encenadora, protagonista, júri, ganhava sempre. Em casa tinha de mostrar o estojo da escola ao pai diariamente, talvez por isso se tenha tornado tão perfeccionista, obstinada, saiam-da-frente-ou-são--atropelados. Tem orgulho na sua parecença com Patti Smith, sente-se “farsola” nos Globos de Ouro e guardou o email que Luís Miguel Cintra lhe enviou em forma de convite de trabalho – estamos a rezar para que ele leia esta entrevista. Não é fascinada por Hollywood, a não ser que o Sean Penn lhe ligue. Aí, até faria um filme de vampiros.
Três tragédias, três peças, três semanas. Quando o Tiago Rodrigues a convidou, chamou-lhe louco?
Chamei e pensei, apesar de não tanto pelo meu ponto de vista, mais pelo dele. Achei que era uma grande demência. Acontece-me sempre o mesmo com o Tiago, há ali uns segundos em que penso: “Ele não vai conseguir fazer isto” [risos]. Mas consegue sempre, e muito melhor do que se possa pensar. Não é o fim do mundo, mas não é fácil.
Refere-se à sua perspectiva?
Exacto, há espectáculos de duas e três horas. Aqui, a maior dificuldade foi a de cumprir prazos, decorar, dar consistência às coisas.
Sobretudo porque são duas personagens distintas…
Isso é que me custou imenso. Ainda estava a decorar uma e tive de avançar para “Agamémnon”, com o risco de ser demasiado tarde. Parecia que o texto não entrava, que o meu cérebro não estava preparado para decorar o texto como ele estava escrito. Depois passou, felizmente… também acho que começo sempre por achar que vai ser impossível. Foi o que mais me assustou, como é que ia decorar os dois textos.
Chegou a confundir textos?
Não, mas às vezes estou a bater o “Ifigénia” e vêm à minha cabeça pedaços do “Agamémnon” – não em confusão de palavra, mas ele está lá. Imagine, acabo um bloco de um e surge logo um bloco do outro, que consigo controlar.
Falava dos espectáculos de três horas. Parece-lhe um desafio mais complexo do que este?
Não sei, isto não se mede aos palmos, nem aos papéis, nem aos desafios. Às vezes temos participações muito pequenas que podem ser hipercomplexas. Não consigo responder a isso, cada projecto é um projecto. Há um lado meu que parte sempre a zero para todos os projectos, ou seja, fico com a sensação que parece que não sei como é que se faz.
Mas quando pensa isso a Isabel sabe que sabe, certo?
É isso. Estou com quase 40 anos, tenho referências, mas a verdade é que não é um porto seguro, não dou como adquirido que sei fazer as coisas.
Parece-lhe um bom princípio?
Não sei se é bom, às vezes gostava de conseguir acreditar. Mas, ao mesmo tempo, sinto-me muito mais tranquila com o que os outros pensam do que sentia há uns anos…
Quando se deu essa transformação?
Não sei, acho que tem a ver com a noção do que é realmente importante na vida e quando estás a fazer as coisas da melhor maneira que sabes… uns gostam, outros não. É só a nossa opinião, é uma coisa simples, e a mim acontece-me isso enquanto espectadora. Portanto, não posso querer chegar a todas as pessoas, por mais que isso me agradasse. E até acho que não era bom, seria sinal que algo não funcionava.
Seria demasiado irreal.
As coisas são como são, estou nas coisas sempre da mesma maneira, não tenho de ser idolatrada. Se por um lado há esta coisa de começar sempre com a sensação de não saber como se faz, por outro há uma tranquilidade que vem com a maturidade.
Falava da forma como parte para as coisas. A história das tragédias era-lhe familiar?
Estudei-as no Conservatório, nunca as tinha dissecado. Não fazem parte da minha literatura semanal.
O que descobriu ao interpretá-las?
São a origem. E não há como sair delas, aquilo é a origem de tudo, até da telenovela. Há ainda um outro lado que achei um grande desafio, que é: como é que lidamos com a tragédia? A tragédia parece que é uma coisa maior do que nós, maior do que a vida, maior do que o drama, é mesmo pathos, não podes fugir.
Algo superior, portanto.
Sim, e como é que tu transpões isto para hoje, aquelas dores e vinganças, para a actualidade… E estamos perante dores que são maiores do que possas imaginar. Imaginar a dor de um sacrifício de uma filha para ter vento… [risos] Como fazes com que as pessoas acreditem nisto, nem que seja por uns segundos… mas é aí que acho que entra a inteligência do Tiago na reescrita. Admiro-o muito, é uma pessoa que subiu a pulso no seu percurso, adoro a forma como ele aborda coisas tão grandes como o “[Madame] Bovary” ou estas tragédias. Arrisco-me a dizer que uma grande percentagem está feita naquilo que vem escrito.
Acredita que esta relação com o Tiago Rodrigues, que já vem de antes, lhe abriu horizontes?
Isso já disse, a minha primeira peça com o Tiago, “Três Dedos Abaixo do Joelho”, modificou a minha forma de ver o teatro e aquilo que queria fazer enquanto actriz, ou mais coisas que queria fazer enquanto actriz. Sou freelancer, sempre fui, e o meu objectivo sempre foi trabalhar com o maior número de pessoas possíveis, para conseguir aprender e apreender, colocar em causa, questionar-me e confrontar-me. O Tiago tem uma coisa que estimo e na qual acredito mesmo, uma leveza, aquela coisa da criação sem sofrimento. Trabalhar com prazer é mesmo importante.
Nada é um caos.
Precisamente, e tudo tem possibilidade de resolução.
E a Isabel, quando resolveu ser actriz?
Foi bastante simples. No outro dia dizia aos meus filhos que me arrependo de não ter mais ferramentas, ou seja, na altura podia ter estudado mais coisas mas, realmente, só fiz isto na vida. Para mim só havia um caminho. Mesmo na escola, os objectivos das disciplinas eram para direccionar para o teatro. E nada se meteu pelo meio, nada interferiu. As coisas teriam sido diferentes se tivesse concorrido ao Conservatório e não tivesse entrado, se tivesse terminado o Conservatório e não tivesse tido logo trabalho, tudo isso modificaria o trajecto. A verdade é que tudo sempre correu bem.
Aquela imagem de nunca ter chumbado um ano…
Exacto, com 17 anos estava aqui, no Conservatório. Tenho pena de não ter feito outras coisas.São pensamentos meio poéticos, mas têm-me acontecido várias vezes enquanto viajo. Ter vontade de ficar no sítio. E gostava de ter essa liberdade, mas não tenho ferramentas… quer dizer, posso trabalhar nas limpezas, é que até limpo bem, passo a ferro superbem, posso ir trabalhar para um café. Os exemplos que dava aos meus filhos eram algo do género: se soubesse fazer massagens, shiatsu, ou medicina tradicional chinesa…
Sente-se refém da sua opção?
Não, mas sinto que não chego a qualquer país e posso fazer isto, não domino nenhuma língua como o português, não me é natural. E até lá teria de viver, não posso lembrar-me de abrir uma loja de massagens. O meu filho, por exemplo, é cinturão castanho de karaté, daqui a uns anos pode chegar ao preto, e aí pode dar aulas, mesmo que tenha outra profissão.
E a Isabel nunca teve um interesse semelhante, é isso?
Nunca tive nada, fora aquilo que faço. Algo que me permitisse decidir: agora vou ficar neste sítio a dar aulas de karaté.
Leia a entrevista na integra na edição de fim-de-semana do i