Miguel Oliveira nasceu a 4 de Janeiro de 1995 numa altura em que o pai vivia um período de afastamento dos desportos motorizados. Paulo nunca fora um adepto de futebol e garante que chutava sempre para onde estava virado, mas o cenário mudava quando ouvia o ronronar dos motores. “Sempre me atraíram desde miúdo. Mas deixei de seguir com tanta atenção depois da morte do Ayrton Senna [Maio de 1994].” Por essa altura, o filho já vinha a caminho e iria revolucionar a vida da família.
Era uma fase de novas hegemonias. O alemão Michael Schumacher ia a caminho do segundo de sete títulos na Fórmula 1, enquanto o australiano Mick Doohan estava numa série de cinco Mundiais consecutivos nos 500cc. Miguel ainda era muito novo para pensar sequer no que iria fazer quando crescesse, mas a capacidade para ser um ás das duas rodas foi reconhecida desde muito cedo. “A destreza do Miguel parecia infinita. Ele tinha um triciclo a bateria a que dava tanto uso que estava constantemente a carregar. A roda que puxava rompeu e o triciclo foi para o lixo. Mas ele gritava tanto que a única solução foi comprar-lhe uma moto4 a gasolina, essa já não rompia”, recordou Paulo Oliveira ao i em 2011. Tal como o pai, Miguel também nunca foi grande fã de outras modalidades. “Era só mesmo trotinete e coisas com motor. Desde que me lembro que as coisas saíam, os truques com a bicicleta, os cavalinhos… sempre fui inventando coisas novas”, garante.
O óbvio tornou-se impossível de ignorar. Miguel era um predestinado e a família tinha de tomar uma decisão, por isso Paulo revela que tentaram garantir que o filho tivesse condições para se sentir bem. “E as coisas foram acontecendo…”, acrescenta. O talento estava lá mas o processo de aprendizagem seria longo, como prova a declaração feita à Sport TV logo nos primeiros tempos de competição, com 11 anos. “Não tinha bons resultados ao princípio, né? Eu não sabia meter mudanças, eu não sabia curvar… Só que à segunda corrida correu bem, deu resultado… ganhei.” Era esse o estado de espírito constante. Se não sabia, aprendia e aprimorava, crescendo cada vez mais. E ainda hoje é assim, no momento de prever o que vai acontecer na próxima temporada, quando der o salto para a Moto2: “Há muitas coisas que ainda nem sequer sei. Ainda tenho muito a aprender e, se calhar, quando me aparecerem à frente vou pensar ‘mas porque é que não sabia isto há mais tempo?’.”
Metas e patamares Portugal não tinha um caminho desbravado para pilotos e Miguel Oliveira teve de partir do zero, embora isso não tenha sido um grande problema. “Sabia bem o que queria e o que tinha de estabelecer a seguir. Em tudo na vida é assim:quando atingimos um patamar, queremos olhar para o seguinte”, explicou. Mas as metas nunca foram pensadas a longo prazo, garante Paulo: “Há coisas a acontecer naturalmente, não foram pensadas. Foram-se arranjando soluções, mas não havia uma estratégia. Ao vê-lo fazer o Campeonato Espanhol de Velocidade como fez, tentámos dar os passos certos de forma a que a evolução fosse sustentada.”
O resto é história. Em 2011 tornou-se o primeiro piloto português a participar no Campeonato Mundial de Motociclismo em 125cc, ao serviço da Andalucia Banca Civica. O sonho tinha sido alcançado, mas a época foi mais complicada do que esperava, com o contrato a ser terminado durante a época. “Retirou um pouco de confiança, mas nunca deixei de acreditar em mim. E foi um ano que deu para aprender bastante nas corridas. Quando se chega a um campeonato tão competitivo, é assim”, comentou em 2013.
A categoria de 125cc passou a Moto3 e Miguel Oliveira foi criando raízes, aprendendo cada vez mais e evoluindo a nível técnico. Em 2012 conseguiu o primeiro pódio, na Catalunha, e a partir do ano seguinte correu pela Mahindra. Qualquer uma das motos teve sempre um papel fundamental na evolução. O destaque é feito pelo pai, que realça que Miguel é visto como um dos melhores pilotos tecnicamente na categoria. Muito por culpa da experiência de anos consecutivos a trabalhar na evolução das motos, a que se juntou mais este ano, com a KTM. “Ele é tecnicamente muito forte e essa foi uma das razões para a Mahindra ter apostado nele também. A sua técnica permitiu dar passos em frente”, considera.
A Mahindra não tinha a mesma velocidade de ponta da Honda e da KTM e a técnica ajudou a encurtar distâncias, numa conjugação de talento com necessidade. “Foi um misto da técnica que ele tinha com a obrigação de a ter para poder fazer a diferença nas corridas. Foi forçado porque também queria obter resultados”, admite Paulo. E eles foram aparecendo, com mais um pódio em 2013 e outro em 2014. Nesta altura já havia propostas para dar o salto para a Moto2, mas os requisitos não estavam cumpridos.
A gestão de carreira foi um ponto essencial na evolução de Miguel Oliveira. O lado desportivo foi sempre projectado para primeiro plano, deixando motivações financeiras e de progressão de categoria de lado. Era isso que garantia em 2013, antevendo o que seria necessário para poder subir à segunda categoria. “Se fizer uma época sólida, estiver muitas vezes no pódio e surgir a equipa certa, subirei de categoria. Senão, acho que não vale a pena.”
O momento da viragem A ida para a KTM este ano contribuiu radicalmente para a afirmação de Miguel Oliveira em Moto3. O arranque foi marcado pelo azar, com uma queda e uma desistência nas duas primeiras corridas, mas a partir daí os resultados apareceram. A estatística demonstra-o de forma esmagadora na comparação entre 2015 e os quatro anos anteriores: somou as duas primeiras vitórias (Itália e Holanda) e já conseguiu tantos pódios (4 vs. 4), poles (1 vs. 1) e voltas mais rápidas (3 vs. 3) como no passado. E ainda faltam cinco corridas. Paulo atribui muito mérito ao filho, considerando que “na KTM, o Miguel veio confirmar tudo o que se sabia”. “A moto é 100% nova e ele voltou a fazer esse trabalho. Já foi capaz de fazer três motos competitivas”, realça.
Os requisitos desportivos estavam cumpridos, faltava a boa proposta. Foi isso que a Leopard trouxe, permitindo o anúncio no fim-de-semana do Grande Prémio de San Marino. O piloto de 20 anos sente-se confortável com um passo que considera natural. “Embora saibamos o que conseguimos fazer, é sempre diferente quando o concretizamos. Dá outra confiança. Já tinha muita certeza do que queria, só faltava a equipa certa”, conta ao i na preparação para a corrida deste fim-de-semana emAragão. E o facto de a Leopard se ir estrear em Moto2 não é preocupante. “Diz-se que é uma equipa nova, mas não é bem assim. As pessoas não estão ali há dois dias. Tomei tudo isto em consideração. A escolha não foi ao calhas”, assegura o piloto, referindo-se à gestão da equipa por parte de Stefan Kiefer, que foi campeão da categoria com Stefan Bradl em 2011.
A grande prioridade até Novembro vai continuar a ser o Moto3 mas, seguindo a lógica de “patamar alcançado, patamar desejado”, Miguel Oliveira não tem rodeios na altura de discutir o próximo passo: “Objectivo continua a ser entrar no MotoGP e correr contra Valentino Rossi. Os resultados é que vão ditar o futuro. Estou confiante, é uma questão de me adaptar. As motos requerem muita adaptação e vou ter de trabalhar muito no Inverno. Sou um rookie e seria insensato traçar objectivos, mas espero estar sempre na luta.”
Quando tudo mudou A primeira vitória foi um momento marcante na temporada. Miguel Oliveira teve uma estratégia irrepreensível e conseguia aproveitar as últimas curvas de cada volta para ganhar uma distância relevante a fim de manter a liderança até ao final da recta da meta. Apesar de Paulo ser uma presença quase constante em todas as corridas, nesse dia não estava no circuito.
“Não me fale disso! Tinha um compromisso que não consegui adiar, não dava mesmo para apanhar um avião e ir lá. Mas vi em casa, com a minha mulher e a minha filha, e foi uma grande tensão. Na véspera tivemos uma conversa bastante longa e disse-lhe que quem anda na frente arrisca-se a vencer”, começa por contar, antes de avançar para o momento de maior adrenalina a toda a velocidade. “Estava a ver a corrida na televisão e a acompanhar os parciais no computador, só que os dois não estavam sincronizados. E quando olho para o monitor, gritei ‘Ganhou! Ganhou!’ ‘Mas ganhou como?Ainda não acabou!’, reagiu a minha filha. Apontei para o computador e repeti. Foi um momento estrondoso. Muito bom, muito bom!”
Ali, naquele dia, o culminar de um patamar tinha sido alcançado. Era o último passo de um capítulo com anos e anos de aposta, sofrimento e dedicação. “É bastante prestigiante”, considera Paulo. “Acabei por montar a minha vida nos últimos anos à volta disto, para potenciar sempre as oportunidades, e a vitória traz um sabor muito doce. São muitos anos assim e foi uma vitória muito merecida.”
O nível de reconhecimento em Portugal também aumentou exponencialmente. Os dois triunfos garantiram recepções eufóricas no aeroporto, que são “um motivo de orgulho” para Miguel Oliveira. “Há uma grande ligação emocional, uma gratidão, e muito mais gente que passa a acompanhar. Eu corro de capacete e o reconhecimento na rua é importante a partir do momento em que já o fazem pela cara”, explica.
A legião de fãs aumentou (o grupo no Facebook cresceu de 18 500 em 2013 para quase 70 mil), mas Miguel realça que, mais do que isso, importa o grande grau de interacção. Como o de Francisco, o fã que tem a assinatura do piloto tatuada no corpo e faz questão de levar a família a todos os eventos dinamizados por Miguel Oliveira. Mas nenhum vive de forma tão intensa como a família. “Não sei se perco anos de vida”, comenta Paulo. “A tensão é bastante grande, a competição é muito grande, as rodas estão a centímetros das dos rivais e as quedas podem acontecer a qualquer momento. Lá em casa, a minha mulher passa a prova a virar a casa. A minha filha é como a mãe, também não pára quieta. Sabemos que o perigo existe, mas não pensamos nele.”
Os desejos do piloto e estudante de Medicina Dentária continuam no bom caminho. “O objectivo é que as pessoas fiquem de boca aberta a ver-me correr. Depois, se for preciso, a ver-me trabalhar.”
Evolução
Atacou 2010 com o objectivo de se estrear no Mundial no ano seguinte. Foi um ano de aprendizagem e antes do GP Estoril ainda fazia preparação com o pai, com jornadas de 40 quilómetros de bicicleta nos trilhos da Herdade da Apostiça. A responsabilidade aumentou, mudou de equipa e em 2012 os resultados surgiram. Em 2013, o caminho passado e o futuro já aparecia muito bem traçado.