Escrita, música, ilustração e cinema cruzam-se nas actividades que preenchem os dias e a biografia de Afonso Cruz. Nesta altura são os livros que levam a melhor e “Flores” é a mais recente amostra do talento literário do autor. Narrado na primeira pessoa, o romance desenrola–se em torno das questões da memória e da identidade, mas a conversa leva-nos ainda para a rotina, que também emerge nas suas páginas. Mais umas na extensa e diversificada obra do escritor.
Quando olhamos para a sua bibliografia vemos que produziu muito em poucos anos. É um criador compulsivo?
Gosto muito daquilo que faço e acho que isso me ajuda a ter esta cadência. Faço–o por prazer, não tenho essa fronteira do “acordo e vou trabalhar”. O meu ócio é o meu trabalho. A maior parte das vezes estou a tocar, a desenhar, a escrever ou a ler – estas duas, actividades muito conectadas, e por isso acabo por escrever com frequência e por hábito. Mas acima de tudo é um prazer e é o meu lazer também.
Isso faz com que haja uma certa continuidade no processo criativo?
Sim, quando criamos alguma coisa, e se o fazemos com sinceridade, acabamos por colocar nisso muito do que somos. No caso dos meus livros há personagens que passam de um para o outro. Isso é muito comum e dá uma coesão a este universo que crio, torna-o mais sólido. É uma coisa que faz parte da minha vida, quase tão material quanto uma mesa. Quando escrevo um romance acabo por viver com estas personagens quase como se fizessem parte da minha família. Acordo com elas, estou a comer e estou a pensar no que elas fariam, diriam, volto a reencontrá-las mais tarde. Quando preciso de uma personagem com determinadas características, já a tenho.
Parece quase um álbum de família.
Exacto. E sei o que ela quer, como ela se porta. Isso é um conforto grande. Algumas são quase uns amigos imaginários. O Isaac Dresner [uma das suas personagens] está muitas vezes a coxear aqui ao meu lado.
Quanto tempo demorou a escrever este “Flores”?
É impossível saber, porque se calhar há um dia em que não escrevo, no outro dia escrevo cinco minutos, no outro cinco horas, no outro dez. Normalmente, depois de ter uma ideia para um livro, passado dois ou três meses tenho um primeiro esboço, que depois é meio trabalhado, e aí demora mais tempo. Mas se calhar é uma coisa que se faz ao longo de um ano.
Este livro fala de memórias e de como elas condicionam identidades e relações. Porque quis explorar estas questões?
A memória é daqueles temas que podem ir a par da morte, do amor. É um grande tema e uma das coisas mais fascinantes da nossa vida, porque tem muito a ver com a identidade, o que identificamos como o “eu”. E trabalhar sobre ela coloca-nos questões muito próximas dos outros grandes temas, como a morte. Depois de morrermos, o que acontece ao “eu”? É uma questão quase budista. Quando reflectimos sobre a memória, muitas vezes chegamos à conclusão de que não é absolutamente definidora da nossa personalidade e isso também é muito curioso, porque tendemos a acreditar que somos a continuidade de actos passados mas, se um dia a perdemos, continuamos a ser nós.
E o Afonso tem boa memória ou é pessoa de anotar aquilo que observa?
Tenho muito boa memória para algumas coisas e péssima para outras. Tenho amigos que se lembram de tudo dos filmes que viram e eu, no caso de filmes e muitas vezes de livros, não me lembro de cenas específicas, mas do que se tratava de maneira genérica, quase como se estivesse a olhar para uma paisagem. Consigo ter algumas referências com facilidade, sem ter muito rigor. Mas não me preocupo muito com isso. É um trabalho de ficção; obviamente, se fosse um trabalho científico, seria de outra maneira. Sendo ficção, gosto que haja essa parte de erro.
Foi por isso que decidiu, no livro, que as memórias da personagem do senhor Ulme fossem reconstituídas através das perspectivas subjectivas de outros?
Sim, é ter essa ideia de que não somos uma pessoa, mas sim milhares de pessoas. Depende da maneira como somos vistos. Há um livro de que gosto muito e que me marcou na altura, “Um, Ninguém e Cem Mil”, do Pirandello, em que quando a pessoa se olha ao espelho, ficciona uma parte daquilo que é. Temos uma ideia muito limitada da nossa própria identidade. Digo muitas vezes que as pessoas que estão à minha volta conhecem a minha nuca melhor do que eu.
Através dessas memórias aborda o nosso passado recente. Tinha essa intenção?
Sim, foi intencional. Como o livro se coloca geograficamente em Portugal, seria mais do que justo abordar algumas das coisas que estamos a viver e outras que vivemos na segunda metade do século XX.
“Flores” fala também de rotinas e, apesar de o narrador clamar que viver é o que não fazemos todos os dias, o senhor Ulme, de certa forma, depende delas para saber quem é. Há essa dualidade.
Exactamente, existe essa dualidade. A solidez é-nos dada pela rotina, mas quando contamos a nossa vida, ela é precisamente descrita pelo oposto, o extraordinário. Há realmente essa contradição e ela existe nas nossas vidas. A rotina é mais definidora do que somos do que os momentos fora do comum, mas são esses que contamos quando perguntam quem somos.
O livro refere memórias de infância, algumas guardadas só pelas mães. O que recorda dos seus tempos de criança?
Este livro tem coisas que são mais próximas da minha vida do que outros que escrevi. O caso do Action Man comprado em Espanha. É uma memória que tenho, assim como o carro do meu pai, com o volante quadrado. É um período muito importante para nós, é formador, havendo, no entanto, essa questão dos primeiros quatro ou cinco anos, em que não temos memórias e elas estão nos outros. Tive essa noção quando a minha mãe morreu. Nessa altura apercebi-me de que há uma parte da minha vida que morreu com ela, que não é recuperável.
Considerando as suas várias facetas criativas, que palavra o define melhor?
Talvez escritor, por um motivo simples: passo muito mais tempo a escrever. Estou muito mais tempo com um romance do com uma música ou mesmo um livro ilustrado. Também passo muito tempo por dia a ler, que é o meu combustível para escrever. Se calhar, até é mais a palavra livros que a de escritor.
Voltando às memórias de infância, o que o fascinou primeiro, entre essas artes?
Sempre tive livros à minha volta, mas nunca houve uma imposição relativamente à leitura e acho isso perfeito porque, às vezes, a obrigação tem o efeito contrário. Sempre tive livros e também li muita banda desenhada, e a minha ideia quando era criança era fazer banda desenhada um dia, coisa que nunca fiz.
E ainda gostava de vir a fazer?
Talvez. Sim, é provável que um dia venha a fazer, uma nova forma de expressão é sempre bem-vinda.
A nível de formação académica é a ilustração que sobressai e está presente em muitos livros.
Quase todos são ilustrados. Este não tem ilustrações minhas porque não senti essa necessidade. Pensei em ter fotografias, mas acabei por abandonar a ideia.
Que tipo de fotografias seria?
Tinha a ver com as notícias, as várias tragédias ou acontecimentos do quotidiano que depois teriam uma espécie de rosto, porque às vezes é preciso apontar dedos, e serviriam para isso. Mas desisti por ser uma coisa demasiado complexa para fazer nesta altura e não ser necessária para a história.
Se tivesse de usar uma palavra para o definir como escritor, qual seria?
Isso é tão difícil [risos]. Ainda por cima para nós, o que inviabiliza à partida as palavras elogiosas e, por outro lado, também não me vou insultar. Não sei, eu gosto muito daquilo que faço, talvez haja aqui alguma paixão.