O julgamento de Yagoda e Krestinsky


Legislador sem remorsos, que é essa a bênção de todos quantos emprenham de ouvido enquanto embalam as manhãs na leitura de jornais que deixam tinta nos dedos


Os portugueses que cá costumam carpir os males da pátria tornam-se, lá fora, entusiastas do torrão amado. Para lá de Badajoz, tudo o que é português parece melhor, a comida, as praias, a música, os desportistas, os sorrisos e abraços, a literatura e, claro está, os Descobrimentos (grandeza mitificada que redime qualquer pequenez). E quanto mais longe, maiores o entusiasmo e os superlativos, e não há português que não deixe cair, sobre isto ou aquilo do país que visita, que em Portugal é muito melhor. Ora, o que não será em Moscovo, a um continente de distância?

Aí, um português versado em processo penal e crítico dos caminhos pelos quais o têm levado, viu-se num dia de visita em frente à Lubianka a ouvir o guia sobre o que ali poderá ter feito a polícia secreta durante os Processos de Moscovo, quando Estaline varreu da face da terra os possíveis opositores e críticos, e também todos os que tinham memória.

Conta-se, por exemplo, que no julgamento de Yagoda e Krestinsky (entre outros), em 1938, um e outro tiveram momentos em que, com o que ainda lhes restava de coragem e humanidade, deram o dito por não dito, negando as confissões que haviam feito na fase anterior do processo (por certo inspirados por artes da Lubianka). O procurador reagiu como era de esperar de alguém que só ali estava para ajudar o veredicto já ditado a navegar pelo simulacro de julgamento até bom porto. E os juízes, que ali estavam para compor a fantochada, mandaram suspender as sessões.

Durante o tempo necessário para que os zelosos agentes tivessem a oportunidade de recordar aos então pouco inspirados Yagoda e Krestinsky que nas caves da Lubianka lhes poderia voltar a inspiração, para já não falar nas chatices que se poderiam arranjar aos familiares, desde uma ida à Sibéria até um pelotão de fuzilamento. Remédio santo, tanto que, quando foi reaberta a audiência, recuperaram ambos a razão, e reconheceram que afinal haviam confessado bem e que, sim senhor, eram inimigos do povo.

Que perda de tempo e de recursos – exclamou o português a um atónito guia, que lhe pediu que falasse baixo, porque é melhor não agitar fantasmas e demónios, e o passado nunca está enterrado. E foi já em voz baixa que o nosso português lhe disse que se fosse no seu país, hoje, não seria preciso suspender os trabalhos para dar tempo aos zelosos agentes de relembrar aos recalcitrantes arguidos que o que está confessado está confessado e vale ad saecula saeculorum – sejam quais forem as razões que ditaram a confissão. Em Portugal – rematou ele com orgulho – o que o arguido disse no início do processo vale até ao fim, e em boa verdade nem é preciso grande conversa no julgamento, basta carregar no play e pôr a gravação a rodar. Eficiente, rápido e económico. Inspirado legislador que teve tal ideia; e certamente sem remorsos, que é essa a bênção de todos quantos sabem e pensam pouco e emprenham de ouvido enquanto embalam as manhãs na leitura de jornais que deixam tinta nos dedos.

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado

O julgamento de Yagoda e Krestinsky


Legislador sem remorsos, que é essa a bênção de todos quantos emprenham de ouvido enquanto embalam as manhãs na leitura de jornais que deixam tinta nos dedos


Os portugueses que cá costumam carpir os males da pátria tornam-se, lá fora, entusiastas do torrão amado. Para lá de Badajoz, tudo o que é português parece melhor, a comida, as praias, a música, os desportistas, os sorrisos e abraços, a literatura e, claro está, os Descobrimentos (grandeza mitificada que redime qualquer pequenez). E quanto mais longe, maiores o entusiasmo e os superlativos, e não há português que não deixe cair, sobre isto ou aquilo do país que visita, que em Portugal é muito melhor. Ora, o que não será em Moscovo, a um continente de distância?

Aí, um português versado em processo penal e crítico dos caminhos pelos quais o têm levado, viu-se num dia de visita em frente à Lubianka a ouvir o guia sobre o que ali poderá ter feito a polícia secreta durante os Processos de Moscovo, quando Estaline varreu da face da terra os possíveis opositores e críticos, e também todos os que tinham memória.

Conta-se, por exemplo, que no julgamento de Yagoda e Krestinsky (entre outros), em 1938, um e outro tiveram momentos em que, com o que ainda lhes restava de coragem e humanidade, deram o dito por não dito, negando as confissões que haviam feito na fase anterior do processo (por certo inspirados por artes da Lubianka). O procurador reagiu como era de esperar de alguém que só ali estava para ajudar o veredicto já ditado a navegar pelo simulacro de julgamento até bom porto. E os juízes, que ali estavam para compor a fantochada, mandaram suspender as sessões.

Durante o tempo necessário para que os zelosos agentes tivessem a oportunidade de recordar aos então pouco inspirados Yagoda e Krestinsky que nas caves da Lubianka lhes poderia voltar a inspiração, para já não falar nas chatices que se poderiam arranjar aos familiares, desde uma ida à Sibéria até um pelotão de fuzilamento. Remédio santo, tanto que, quando foi reaberta a audiência, recuperaram ambos a razão, e reconheceram que afinal haviam confessado bem e que, sim senhor, eram inimigos do povo.

Que perda de tempo e de recursos – exclamou o português a um atónito guia, que lhe pediu que falasse baixo, porque é melhor não agitar fantasmas e demónios, e o passado nunca está enterrado. E foi já em voz baixa que o nosso português lhe disse que se fosse no seu país, hoje, não seria preciso suspender os trabalhos para dar tempo aos zelosos agentes de relembrar aos recalcitrantes arguidos que o que está confessado está confessado e vale ad saecula saeculorum – sejam quais forem as razões que ditaram a confissão. Em Portugal – rematou ele com orgulho – o que o arguido disse no início do processo vale até ao fim, e em boa verdade nem é preciso grande conversa no julgamento, basta carregar no play e pôr a gravação a rodar. Eficiente, rápido e económico. Inspirado legislador que teve tal ideia; e certamente sem remorsos, que é essa a bênção de todos quantos sabem e pensam pouco e emprenham de ouvido enquanto embalam as manhãs na leitura de jornais que deixam tinta nos dedos.

Advogado
Escreve quinzenalmente ao sábado