“O que é que está aqui escrito?”, perguntava uma visitante, enquanto se esforçava por interpretar uma inscrição no canto inferior direito de “Sagrada Família”. “Do-ni… Não consigo perceber. Desisto”. O que está ali escrito em caracteres gregos não é de facto fácil de ler: Domenikos Theotokopoulos. Foi sempre assim que o pintor El Greco, nascido em Creta em 1541, assinou as suas obras.
O quadro pertence ao Museu de Santa Cruz de Toledo e está desde ontem em exibição no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), em Lisboa, onde permanecerá até 10 de Janeiro de 2016. O empréstimo inscreve-se na quarta edição da Mostra Espanha 2015. Até Dezembro, realizam-se no âmbito desta bienal cerca de 100 eventos e apresentam-se 50 propostas em 13 cidades, do Minho ao Algarve, nas áreas da “pintura, fotografia, teatro, dança música, cinema, literatura, arquitectura, pensamento e instalações”, resumiu o secretário de Estado da Cultura espanhol, José María Lassalle, na segunda-feira no MNAA.
A cerimónia de arranque da iniciativa contou com a presença de personalidades como Guilherme de Oliveira Martins (presidente do Tribunal de Contas e do Conselho Nacional de Cultura), Emílio Rui Vilar, ex-presidente da Fundação Gulbenkian, José António Pinto Ribeiro e Pedro Roseta, ambos ex-ministros da Cultura, e o novo embaixador de Espanha em Portugal, D. Juan Manuel de Barandica y Luxán, no seu primeiro acto oficial desde que ocupa o cargo.
A ocasião serviu também para entregar o prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura 2014 a Lídia Jorge. “O primeiro sentimento é de incredulidade, o segundo é de imerecimento”, disse a escritora acerca do momento em que lhe foi comunicada a notícia. No discurso de aceitação, Lídia Jorge falou também de “poker do acaso”, de uma “alegria indizível” e recordou os seus laços familiares com Espanha
“Pessoas da minha família casaram com pessoas vindas de Espanha. Numa das fotografias mais antigas, eu estou como dama de honor, segurando as alianças que iam unir uma das minhas tias” a um sevilhano. “Esse tio tocava órgão na pequena igrejinha de Boliqueime e a música sacra, que não tinha palavras, sob as mãos do meu tio falava espanhol. A mesa dos meus tios era naturalmente bilingue – ninguém dava por nada”.
tons “fosforitos” e um s. José escondido Também a obra de El Greco fala duas línguas. Pelo menos assim acreditava o artista, que considerava fazer uma síntese entre a tradição bizantina e a pintura do Renascimento italiano. Quando Domenikos Theotokopoulos nasceu, a ilha de Creta pertencia à República de Veneza e, com 26 anos, o pintor mudou-se para a Sereníssima. Aos 29 foi para Roma, mudando-se dali para Toledo, onde viveu o resto dos seus dias.
A “Sagrada Família” exposta no MNAAapresenta todas as qualidades que associamos ao pintor:figuras esguias, um céu atormentado e tons “fosforitos” (fluorescentes), como caracteriza o professor Fernando Marías, em referência aos tons peculiares de cor de rosa, laranja e amarelo de que o artista fazia uso. O comissário chama também a atenção para a nudez do menino Jesus, “filho não só do verbo, mas também da carne, e um ser humano ao mesmo tempo que filho de Deus”.
Às quatro figuras da Virgem, de Santa Ana (que “levanta cuidadosamente os panos do Menino adormecido, como prefiguração da sua própria morte”, lê-se num pequeno texto de Marías), do menino e de S. João Baptista, que faz um gesto de silêncio, juntou-se em 1982 uma quinta. Um restauro efectuado nesse ano revelou, sob o céu carregado, um retrato excepcional de um homem calvo com um manto verde – S. José.
Porque terá sido tapado? “Estas pinturas eram verdadeiramente obras colectivas, de um cliente ou patrono que encomenda e de um pintor que executa”, explica Marías. “Por vezes o artista tinha problemas com os clientes” e via-se forçado a fazer alterações à sua obra.
Existe uma outra obra de El Greco que pode ser vista em Portugal: uma “Santa Face” que se encontra na capela privada da Rainha Maria Pia, no Palácio da Ajuda, em Lisboa, e que esteve cerca de cem anos longe dos olhos do público.