Porque mataram Tituba?


Assim o juiz Sewall matou Tituba e mais uma vintena de mulheres. Outras 150 almas purgaram nas prisões. Mais tarde, o juiz Sewall considerou que as suas decisões tinham sido um erro…


Num acórdão recentemente lido, deparei-me com a seguinte passagem: “(…) nos crimes de burla (…) são elevadas as necessidades de prevenção geral por a eles estarem associados factores de danosidade social que requerem cautelas específicas na sua punição, face também à generalização deste tipo de criminalidade, que importa dissuadir, e às consequências para a comunidade em geral, que exigem uma pena que não seja encarada como laxista.”

A afirmação entende-se: estava em causa julgar um daqueles casos que atraiu Portugal inteiro. Entende-se porque o tribunal é humano. E sendo-o, não conseguiu desligar-se da imagem pública que desejava dar da justiça ao povo. E foi isso mesmo que sublinhou as “consequências para a comunidade em geral, que exigem uma pena que não seja encarada como laxista”.

Nessa passagem vê-se que a preocupação não foi a de a pena não ser “laxista”… mas antes a de fixar uma pena que não fosse “encarada” como laxista!
Porém, conhecendo o julgamento feito pelos tribunais portugueses em dezenas de processos quanto ao mesmo “tipo de crime”, não pode acompanhar-se esse critério. O problema aqui não era “deste tipo de crime”, nem da sua generalização, mas do mediatismo dos personagens.

Os factos em julgamento tinham tamanha repercussão social que até um comentador televisivo, doutor em direito, por diversas vezes deu expressão às tais pretensões não laxistas, esquecendo-se dos princípios de direito que lhe ensinaram e exigindo publicamente “prisões”. Como se tivesse algum conhecimento judiciário do caso! Como se tivesse tido algum conhecimento da apreciação concreta da prova!

Para que conste: diariamente são julgadas e sancionadas em Portugal muitas burlas, algumas de milhões de euros, mas nem todas sancionadas com prisão, nem com prisão de mais de metade das molduras legais, nem, muito menos, com prisões efectivas. A diferença de alguns casos em relação às centenas de casos “vulgares” está no ferrete mediático que lhes é aposto. 

Também na pequena povoação de Salém, a danosidade social imputada por toda a colectividade à actuação de algumas mulheres levou à respectiva condenação pela prática de bruxaria… e como foi grande essa danosidade social, essas “consequências para a comunidade em geral” levaram os juízes a decidir que não podiam fixar penas que fossem pela comunidade encaradas como laxistas.

Assim, o juiz Samuel Sewall matou Tituba e mais uma vintena de mulheres. Outras 150 almas purgaram nas prisões. Nesses processos existiram documentos, existiram testemunhas, existiram procuradores, defensores e juízes doutíssimos. Curiosamente, passada a comoção social, anos mais tarde, o juiz Sewall considerou que as suas decisões tinham sido um erro… motivado pela necessidade de dar satisfação social às pretensões de justiça da colectividade.
Por tudo isso, apesar de em todas as decisões penais condenatórias existir uma frase de praxe que diz que as “necessidades de prevenção geral não podem fazer olvidar que a cada arguido deve ser aplicada uma pena em função do seu grau de culpa”, resulta óbvio ser mero wishful thinking quando os casos são mediáticos. O que importa é mostrar-se “não laxista”!

Advogado
Escreve à sexta-feira

Porque mataram Tituba?


Assim o juiz Sewall matou Tituba e mais uma vintena de mulheres. Outras 150 almas purgaram nas prisões. Mais tarde, o juiz Sewall considerou que as suas decisões tinham sido um erro…


Num acórdão recentemente lido, deparei-me com a seguinte passagem: “(…) nos crimes de burla (…) são elevadas as necessidades de prevenção geral por a eles estarem associados factores de danosidade social que requerem cautelas específicas na sua punição, face também à generalização deste tipo de criminalidade, que importa dissuadir, e às consequências para a comunidade em geral, que exigem uma pena que não seja encarada como laxista.”

A afirmação entende-se: estava em causa julgar um daqueles casos que atraiu Portugal inteiro. Entende-se porque o tribunal é humano. E sendo-o, não conseguiu desligar-se da imagem pública que desejava dar da justiça ao povo. E foi isso mesmo que sublinhou as “consequências para a comunidade em geral, que exigem uma pena que não seja encarada como laxista”.

Nessa passagem vê-se que a preocupação não foi a de a pena não ser “laxista”… mas antes a de fixar uma pena que não fosse “encarada” como laxista!
Porém, conhecendo o julgamento feito pelos tribunais portugueses em dezenas de processos quanto ao mesmo “tipo de crime”, não pode acompanhar-se esse critério. O problema aqui não era “deste tipo de crime”, nem da sua generalização, mas do mediatismo dos personagens.

Os factos em julgamento tinham tamanha repercussão social que até um comentador televisivo, doutor em direito, por diversas vezes deu expressão às tais pretensões não laxistas, esquecendo-se dos princípios de direito que lhe ensinaram e exigindo publicamente “prisões”. Como se tivesse algum conhecimento judiciário do caso! Como se tivesse tido algum conhecimento da apreciação concreta da prova!

Para que conste: diariamente são julgadas e sancionadas em Portugal muitas burlas, algumas de milhões de euros, mas nem todas sancionadas com prisão, nem com prisão de mais de metade das molduras legais, nem, muito menos, com prisões efectivas. A diferença de alguns casos em relação às centenas de casos “vulgares” está no ferrete mediático que lhes é aposto. 

Também na pequena povoação de Salém, a danosidade social imputada por toda a colectividade à actuação de algumas mulheres levou à respectiva condenação pela prática de bruxaria… e como foi grande essa danosidade social, essas “consequências para a comunidade em geral” levaram os juízes a decidir que não podiam fixar penas que fossem pela comunidade encaradas como laxistas.

Assim, o juiz Samuel Sewall matou Tituba e mais uma vintena de mulheres. Outras 150 almas purgaram nas prisões. Nesses processos existiram documentos, existiram testemunhas, existiram procuradores, defensores e juízes doutíssimos. Curiosamente, passada a comoção social, anos mais tarde, o juiz Sewall considerou que as suas decisões tinham sido um erro… motivado pela necessidade de dar satisfação social às pretensões de justiça da colectividade.
Por tudo isso, apesar de em todas as decisões penais condenatórias existir uma frase de praxe que diz que as “necessidades de prevenção geral não podem fazer olvidar que a cada arguido deve ser aplicada uma pena em função do seu grau de culpa”, resulta óbvio ser mero wishful thinking quando os casos são mediáticos. O que importa é mostrar-se “não laxista”!

Advogado
Escreve à sexta-feira