O grande delta

O grande delta


É o mais alto do país e um dos 30 mais altos do mundo. Do alto do Farol da Barra avista-se em toda a plenitude o magnífico acidente geográfico que conhecemos pelo nome de ria de Aveiro.


É um enorme vestido de água. Estende-se paralelamente ao mar, numa distância de 45 quilómetros, de Ovar a Mira. Denomina-se este acidente costeiro ria ou delta de Aveiro e do Vouga. Resulta da formação de cordões litorais através da deposição de areias que chegam a fechar a entrada para a ria. As obras já empreendidas serviram para permitir a circulação dos navios que vêm do Atlântico.

O velho ferry Cale de Aveiro faz a ligação de São Jacinto, a única praia do concelho de Aveiro, ao Forte da Barra, que já pertence a Ílhavo. 

São 17h15. A viagem demora 15 minutos. Neste ferry vão automóveis, motos e uns putos que viajam aqui todos os dias por causa da escola.

Creio que sou o único mochileiro. Tenho o pea coat vestido, calças a caminho da cor de sangue e botas que já pisaram Portugal de lés a lés.

Sente-se a vibração dos motores, que se fazem ouvir em tom grosso ria fora. Passam algumas traineiras desembestadas. Vão escoltadas por bandos de gaivotas oportunistas, à coca de aperitivos arremessados pelos pescadores. Pequenos barcos de água doce, que se distinguem pelo fundo chato, sem uma quilha como as embarcações de mar, rastejam nestas águas espanadas à procura de peixe. 

Desembarco. Tenho uma longa caminhada a fazer até ao farol da Barra, onde vou ficar durante os próximos dias. Mesmo não sabendo o caminho, oriento-me pelo Sol e pela torre faroleira, que se destaca das construções na cercania. É o farol mais alto de Portugal, e um dos 30 mais altos do mundo: tem 62 metros de altura e 66 acima do nível do mar.

Para evitar os 288 degraus em caracol vou de elevador, na companhia do faroleiro João Pires. Ele fala-me sobre o farol de forma apaixonada, com o auxílio de algumas informações que juntou, devido ao seu aguçado interesse por arquitectura. Sabe de cor que o farol tem 96 estacas, cada uma com 8,5 metros e 26 centímetros de diâmetro, espetadas na base, à altura das mais baixas águas. Sobre elas foi montada uma malha de madeira inserida na base da torre, entre 1885 e 1893. A resistência da construção deve-se à qualidade da alvenaria e dos materiais em geral: utilizaram pinho da mata nacional. As vigas são de pitch-pine, conhecido por Pinus rigida americano e canadiano. E já agora fica a saber que o escudo de armas que está à entrada é do final do reinado e da vida de D. Luís I, O Bom. É de pedra proveniente de Pêro Pinheiro (Sintra).

O céu mazombo de nuvens aos farrapos embrulha--se com a linha do horizonte. O lume do sol treme à medida que se vai pondo a jeito para nascer no outro lado do mundo. Daqui, da varanda do farol, compreendo melhor a extensão da ria. Olhando para sul vejo o tamanhão do areal da praia da Barra. 

Entretanto chegam as sombras da noite, estirando--se paulatinamente pela costa. O faroleiro João dobra as cortinas brancas que tapam os janelões da torre do farol durante o dia. Quando a noite se fecha, os corações dos homens que estão no mar apertam-se. Ficam ansiosos por avistar, até 23 milhas náuticas (mais ou menos 43 quilómetros), o rasgo de luz que o farol lhes garante todos os dias.

A divisão onde vou pernoitar tem um quarto, uma casa de banho e uma cozinha, na qual preparo uma refeição. Vou jantar a lata de ravioli com molho de tomate que trouxe no malote. Tem sabor económico e satisfaz-me plenamente quando não me apetece cirandar que nem um cão de caça à procura de templos gastronómicos. Sabe-me bem estar no farol a fazer coisas banais: ver o telejornal, ouvir música enquanto refastelo o esqueleto ou simplesmente a fazer nada.

Vou até à praia, mesmo aqui em frente, depois de jantar. A tiritar de frio aconchego-me no baque da maré enquanto a noite se constela. Enquadrado no céu estrelado, o farol com riscas brancas e vermelhas arranca-me um brilho especial aos olhos.

Volto para a “casa” depois de fotografar e gravar os sons da praia. Cruzo-me com um dos faroleiros de serviço, que me deseja boa noite e me põe à vontade para o caso de eu necessitar de algo.

A amabilidade de todos os residentes do farol da Barra faz-me sentir bem acolhido. Atendendo aos poucos recursos do Estado e à agressividade da maresia de sol a sol, o trabalho que os faroleiros são obrigados a fazer (carpintaria, electricidade, canalização, entre outros ofícios) merece ser reconhecido com uma palavra de apreço.

Acordo pelas 7h00. Depois de um duche, aqueço água para o chá num antigo fogão de esmalte branco. Como umas torradas e depois uma maçã. Parece que o dia será soalheiro. A ria é riscada por inúmeras embarcações: as maiores trazem histórias do mar. As mais pequenas, que só navegam na ria, dão-me sinais de maior familiaridade. Aproximo-me de uma que está atracada na margem do lado ba barra e peço-lhe uma carona até à Gafanha. Na semana que vem conto como foi.