“Como assim acabou o material de sutura?” Susan Lewallen, oftalmologista do Colorado, lembra-se bem da “frustração” de ter um doente à frente e ninguém a ter avisado que afinal não ia dar para operar. Este foi apenas um dos choques quando aterrou no Malawi, nos anos 1990, para cumprir o sonho de fazer medicina tropical. “O problema não era tanto não haver médicos ou cirurgiões, mas a ausência de todo um sistema. Faltavam as coisas que qualquer médico em Portugal ou nos EUA dá por garantidas”, conta.
De regresso aos EUA com o marido, epidemiologista, começaram a traçar um plano. E se criassem um centro de formação capaz de pôr a máquina a funcionar e optimizar os resultados? Levaram sete anos a desenvolver o projecto e a conseguir apoios financeiros para, em 2001, surgir finalmente o Kilimanjaro Centre for Community Ophthalmology. A iniciativa e os primeiros (e principais) financiadores – a Seva Foundation e a Seva Canadá – foram ontem distinguidos com o Prémio de Visão da Fundação Champalimaud, o maior galardão a nível mundial nesta área, atribuído em Portugal desde 2007.
Mais que medicina Susan e o marido, Paul Courtright, conheceram-se na universidade e concordaram em fazer carreira internacional. Mas os quatro anos no Malawi bastaram para perceber que ser médico em países em de-senvolvimento implicava pensar em muito mais que técnica.
Chamaram Kilimanjaro ao centro por terem criado a primeira sede em Moshi, no sopé da montanha na Tanzânia. E desde então já estabeleceram parcerias em países como o Burundi, Madagáscar ou Etiópia. Os desafios são semelhantes, explicam. “Muitas vezes, as mulheres adiavam ir tratar-se porque simplesmente os homens não o permitiam. Tivemos uma mulher com cataratas que só foi operada quando o marido morreu”, lembra Paul.
A equidade de género tornou--se assim parte da prescrição, a par de outras intervenções culturais.“Nestes meios, os hospitais têm tão poucas condições que são vistos como locais onde se vai apenas para morrer. Há um grande estigma que afasta as pessoas”, acrescenta Jack Blanks, da Seva Foundation. As crenças são outra barreira. E as doenças dos olhos, o espelho da alma, são ainda mais susceptíveis de gerar mitos, explicam. Pensa-se que é o destino deixar de ver. Ou, como chegaram também a ouvir, que doenças infecciosas como o traucoma – uma conjuntivite causada por uma bactéria que está por detrás de oito milhões de casos de cegueira nos países mais pobres – mais não é que uma desfiguração que afecta as bruxas.
“Percebemos que para ter sucesso tínhamos de capacitar os profissionais locais para irem, porta a porta, fazer trabalho de comunicação com a população”, explica Susan. Aqui, o contributo financeiro e de know-how de parceiros como a Fundação Seva revelaram-se cruciais. Nos últimos 35 anos, esta fundação contribuiu para o tratamento de doenças como cataratas de três milhões de pessoas, primeiro em países como Tibete, Nepal e Camboja, tendo por isso uma carteira de estratégias para implementar.
No Kilimanjaro, em cada local que intervêm dão formação e é designado um gestor para operacionalizar o acompanhamento dos doentes e garantir que, depois de se convencer alguém que nunca tinha saído da aldeia a deixar-se observar por um médico, não falta material para operar se for caso disso, como aconteceu com Susan no início.
No fundo, procuram perceber o que está a falhar para poderem chegar a mais doentes e contribuir para os objectivos da estratégia internacional Vision 2020 – 80% dos casos de cegueira a nível mundial são evitáveis e nove em cada dez encontram-se em países pobres, o que significa que milhões de pessoas poderiam ver se tivessem acesso a tratamento. “Às vezes são coisas que não custam muito dinheiro, como ter duas marquesas numa sala em vez de uma para que, num dia, um cirurgião possa operar mais doentes.”
sem gorduras Passados 14 anos, Paul diz que o melhor balanço é que, em cada local que intervêm, o número de pessoas rastreadas e tratadas aumenta dez vezes em três anos. Só no ano passado, a intervenção do Kilimanjaro Centre for Community Ophthalmology contribuiu para rastrear e tratar 102 mil pessoas e ainda fazer 8500 operações às cataratas em comunidades de Madagáscar, Burundi, Uganda ou Etiópia – tudo com um orçamento de 1,5 milhões.
Começaram na África de língua inglesa, mas hoje o projecto chega a 25 países e esperam continuar a crescer. É para isso que vai servir o prémio, de um milhão de euros. “Temos dez colaboradores, dois a part-time. Não temos gorduras”, sorri Paul.
Se estar a criar uma revolução na forma de pensar as respostas da saúde pode beneficiar até outras áreas de tratamento, as memórias mais bonitas são da festa que as famílias fazem quando um doente volta a ver. “Lembro-me de uma menina de quatro anos a quem tratámos umas cataratas e demos-lhe uns óculos cheios de estilo – sim, não vale a pena dar óculos feios a crianças! Qualquer pessoa que nunca viu bem não tem logo um sorriso imediato. É tudo estranho. Mas o sorriso da mãe dela não tem preço”, diz Paul. “São pessoas que, de outra forma, não poderiam trabalhar, até para ir à casa de banho precisavam de ajuda. Devolvemos-lhes a vida.”