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Na semana passada, António Guterres anunciou que, tal como o previsto, deixará o cargo de Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no final do ano. Guterres foi eleito ACNUR pela Assembleia-Geral da ONU (AGNU) em Junho de 2005 e reeleito em 2010 para um segundo mandato que deveria ter terminado no passado mês de Junho. No entanto, a AGNU decidiu, em Fevereiro de 2015, prolongar o seu mandato até ao final do ano por recomendação do secretário-geral da ONU (SGNU), Ban Ki-moon.
Guterres não confirmou se será candidato a SGNU, mas é um segredo público o seu interesse no cargo. Oficialmente, o processo de selecção começa agora a dar os primeiros passos. Nesse âmbito, a AGNU prepara-se para introduzir algumas novidades nos procedimentos mas, tal como no passado, o processo de selecção ameaça caracterizar–se pela sua opacidade, ao abrigo de uma fórmula que, nos bastidores, confere aos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU (CSNU) um poder discricionário.
A Carta da ONU é muito sucinta sobre esta matéria. O artigo 97 limita-se a referir que o secretário-geral será nomeado pela Assembleia-Geral mediante recomendação do CSNU. Na prática, de acordo com uma resolução aprovada pela AGNU em 1946, o CSNU recomenda apenas um nome, num processo em que os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança — China, EUA, França, Grã-Bretanha e Rússia — têm direito de veto. A regra não escrita define igualmente que o SGNU não será originário de um dos cinco membros permanentes e que respeitará o princípio da rotação geográfica.
O mandato de Ban Ki-moon, recorde–se, termina no final de 2016, devendo o próximo SGNU, em teoria, ser oriundo do Grupo da Europa Ocidental e Outros. Porém, o Grupo da Europa de Leste reclama para si esse direito, uma vez que, fruto das vicissitudes da Guerra Fria, nunca houve um SGNU oriundo da região.
Caso decida mesmo avançar, Guterres enfrentará rivais de peso oriundos da Europa central e oriental. Alguns já assumiram oficialmente as suas candidaturas e contam com o apoio declarado dos governos dos seus respectivos países. Tal é o caso de Danilo Türk, ex–presidente da Eslovénia, de Irina Bokova, directora-geral da UNESCO e ex-ministra dos Negócios Estrangeiros da Bulgária, ou de Vesna Pusić, actual ministra dos Negócios Estrangeiros da Croácia. A lista de candidatos possíveis, no entanto, é muito mais vasta — abstenho-me aqui de a enumerar — e não se limita ao Grupo da Europa de Leste. Diria que há potenciais candidatos para todos os gostos, numa altura em que a procissão ainda vai no adro.
Isto dito, neste momento, contra Guterres parece estar uma forte pressão política e diplomática para se escolher um candidato oriundo do Grupo da Europa de Leste, bem como um lóbi muito significativo no sentido de se escolher uma mulher, uma vez que tal nunca aconteceu no passado.
A seu favor poderá estar um veto russo a um eventual candidato oriundo do Grupo da Europa de Leste, numa altura em que a crise ucraniana está muito longe de estar resolvida e em que alguns dos países da Europa central e oriental têm sido particularmente duros com a Rússia. Por outro lado, a extensa rede de contactos que soube angariar nos últimos dez anos enquanto ACNUR, bem como o seu conhecimento aprofundado da máquina da ONU, jogam também a seu favor. Por último, tanto quanto se sabe, Guterres não gera anticorpos junto dos membros permanentes do CSNU.
Contudo, dada a opacidade que caracteriza o processo, neste momento o futuro é de todo imprevisível. Guterres não estará na primeira linha da grelha de partida, mas está suficientemente perto para poder disputar a vitória caso o vento sopre na sua direcção. Oficialmente, o ex-primeiro-ministro não terá ainda comunicado ao governo português a sua vontade de se candidatar e, nessa medida, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, não terá dado início a um conjunto de diligências diplomáticas para angariar votos. Informalmente, porém, é improvável que o governo português não tenha feito já algum trabalho de campo preparatório. Afinal, se e quando avançar, a candidatura de Guterres a SGNU será uma causa nacional, independentemente da composição partidária do próximo governo.
Paulo Gorjão
Professor universitário, director do Instituto Português de Relações Internacionais e Segurança (IPRIS) e assistente na Universidade Lusíada de Lisboa, foi director-adjunto da revista ‘Política Internacional’. Licenciado em Relações Interna- cionais pela Universidade Lusíada de Lisboa, fez um mestrado em Ciência Política na Universidade de Lovaina, Bélgica. Colabora com a FLAD.