Parece um campo de férias como outro qualquer. “Toda a gente: mínimo, um pão inteiro. Máximo, dois pães!”, grita uma monitora. São 9h da manhã, o pequeno-almoço está servido e 31 crianças e adolescentes sentam-se em bancos corridos de madeira à volta da mesa. Este não é o “nosso” grupo, mas isso não sabemos ainda. Afinal, não há nada que denuncie um miúdo infectado com VIH, o vírus da sida.
Vemo-los pouco depois. Estão mais adiantados, apesar da farra da véspera, noite de discoteca, improvisada ao detalhe. Mas já lá vamos. Vão aparecendo, alguns já bem despertos, outros ainda meio estremunhados, com as loiças da primeira refeição do dia nas mãos, que vão colocando sobre o balcão, do lado de fora da segunda janela da copa. Uma ajuda preciosa, mesmo quando uma ou outra peça se estatela no chão. O que é que interessa? Sempre é menos uma para lavar.
Mais a sério, os pequenos são impecáveis e num instantinho tudo fica tratado. O dia promete. Na cozinha, a azáfama para o almoço é grande. Quarta-feira é dia de arraial e as sete mulheres encarregadas das refeições têm de dar conta do recado, e já estão de roda das tiras de carne de porco para assar nas brasas, do arroz branco para acompanhar, das sardinhas que ainda vieram dentro da quota pesqueira e das batatas cozidas. Tudo servido na rua, como manda a tradição, mais uns “ais” e uns “ufs” na romaria do leva e traz – apesar do tempo que, na Tocha, paredes meias com a Figueira da Foz, ameaça chuva para a tarde.
De manhã haverá desportos de aventura, mas o slide, o rappel ou a escalada são brincadeiras de meninos, comparados com as histórias radicais que vamos ouvir dali para a frente. Pais que garantem às filhas adolescentes que “melhor amiga” é ficção, irmãs do meio que procuram entender porque só elas têm VIH, mulheres com medo de um papel que possa denunciar a doença, gente que prefere fazer quilómetros de autocarro e gastar o dinheiro que não tem para ir buscar a medicação lá longe a arriscar ser reconhecida no centro de saúde mais próximo. Pessoas que vivem no pânico de serem descobertas.
O preconceito
Juntos, subimos para a reunião matinal. Há nuvens no ar, apesar dos sorrisos. Um grupo de rapazes conversa sobre a noite anterior. Aproveito a deixa. Felizes, contam que dançaram kizomba e kuduro, mas Eloy confessa que “elas” não lhe ligaram nenhuma. Agora, como é próprio da adolescência, já estão noutra e, sobretudo as raparigas, concentram-se nos preparativos do jantar de gala, que terá lugar no dia seguinte. Este ano, o tema é o Brasil e ainda há muito para fazer.
Ao todo são 46, se contarmos técnicas, incluindo a pediatra do Hospital de Coimbra, Graça Rocha, e a assistente social, Rosa Gomes, duas pessoas sem as quais este projecto nunca teria tido pernas para andar. Muitos, quase todos, estão desconfiados. Por princípio, não gostam de jornalistas. Têm medo de ficar expostos, não querem ser reconhecidos.
Por isso, alguns dos nomes são falsos, escolhidos a dedo pelos protagonistas. A discriminação é uma realidade terrível que já quase todos sentiram na pele. Se não fosse assim, poderia descrever Mariana e a sua beleza exótica, dizer que quer ser médica pediatra e contar o seu percurso de aluna brilhante. Uma menina que soube, que está a saber usar os reveses em seu benefício, em benefício dos outros, apesar de todas as dúvidas. É certo que vai ter muitos rapazolas a quererem dar-lhe a volta. Agora, ainda é cedo, mas e quando chegar a altura de contar, de lhe contar? Estes são medos reais que assolam a cabeça e o coração de qualquer miúda a partir dos 13, 14 anos. Ela também os tem.
Com os rapazes, não é diferente. Vê-se no brilho dos olhos pretos do João, que lhe ilumina o rosto. Mais ainda no sorriso matreiro, quando fala na “dama que não o grama”. E quando chegar a altura, homem feito, de dizer à dama que é ele que a ama? Fará como o único pai que resta no grupo, que ao fim de dois ou três meses de manter uma relação, mesmo que goste muito dela, inventa um arrufo, uma discussão, apenas para lhe fugir, para não ter de contar a verdade toda e ser confrontado com o facto de, assim, ser ela a fugir? Poderia até estar disposta a ficar, mas isso ele nunca vai saber.
Pergunto a cada um quem sabe da sua história, quem sabe que são portadores de VIH. Na escola, no trabalho, na família, entre o grupo de amigos. Ninguém. Ou quase. E, à excepção daqueles que são ainda demasiado novos para compreender, este revela-se um segredo pesado, muitas vezes imposto pelos cuidadores. Para os proteger, para se protegerem. Parecem acreditar que, ainda assim, viver esta solidão é melhor do que ser olhado de lado.
Beatriz já tentou contar várias vezes. Vive em eterno sobressalto. Precisa de contar. Tem um filho de 12 anos, vive sozinha e, como não há nenhum homem disposto a aceitar uma mulher infectada com VIH, acredita, prefere nem sofrer a humilhação. À família vai “atirando barro à parede”. Nunca cola. E volta para a concha. Fala e os olhos ficam marejados de lágrimas. Por causa dos cuidados que tem com o filho, já ouviu muitos comentários “ignorantes”. Foi ela quem transmitiu o vírus ao Filipe, depois de ter “apanhado” pelo seu parceiro. O maior receio é que algum pequeno detalhe acabe por denunciar a doença, uma carta no correio, uma receita médica, uma chamada telefónica. “Recuso-me a viver escondida”, diz.
Mas não só não conta como ensina o pequeno Filipe a calar. “Digo-lhe que há coisas sobre as quais não podemos falar. Temos de nos resguardar para não sermos rejeitados, para não nos magoarmos. Não se pode falar abertamente.” E, no meio de tanta ginástica, “a gente isola-se e ficamos com medo de tudo e de todos”.
Margarida não pensa assim. Sempre sorridente, muda completamente e, num turbilhão, desata: “Eu contei à directora de turma do meu filho que ele está infectado com VIH, pronto! Nós somos pessoas que vivemos no pânico. Mas já vivemos a nossa vida, os nossos filhos ainda têm tudo pela frente. Eu contei na escola para o ensinar a não viver no pânico de ser descoberto.”
Guardar um segredo, para os miúdos, é como brincar às escondidas. Só que este não é um jogo nada divertido e, se forem apanhados, no fim não há ninguém que possa dizer “1,2,3 Manuel, salva todos!”.
De repente, sinto-me de volta a 1993. Recuo no tempo e entro no filme “Filadélfia”, aquele em que o advogado Andrew Beckett [Tom Hanks] é despedido da firma onde trabalha quando se descobre que tem sida. Vinte e dois anos depois, faço as mesmas perguntas que o seu advogado de defesa [Denzel Washington]: “Expliquem-me como se eu tivesse seis anos, como é possível, passadas mais de duas décadas, as mentalidades continuarem iguais? Não houve avanços?”
A pediatra Graça Rocha tem uma resposta. “A doença, também por causa do filme, ficou sempre muito ligada aos comportamentos de risco, como a prostituição e a homossexualidade. Por outro lado, foi olhada pelo fim, pelo lado terminal, das feridas, a forma como se morria. Ficou a imagem e nunca se fez o percurso inverso, dos avanços da medicina, da qualidade de vida que estas pessoas podem ter hoje”, afirma.
Ironia do destino, a sida era então considerada a “lepra do século XX” e o local onde decorre o campo de férias, uma semana por ano desde 2002, é exactamente nos terrenos do Hospital Rovisco Pais, para onde eram antigamente encaminhados os doentes com lepra.
Mas se nos anos 90 a esperança de vida de um doente infectado com VIH era curta – Catarina bem se lembra de lhe dizerem que um familiar poderia viver seis ou sete anos –, actualmente as coisas são bem diferentes. Já não é preciso, como então, “viver um dia de cada vez”, e uma criança infectada com VIH tem uma esperança e uma qualidade de vida que, quando medicada, é superior à de uma criança sem qualquer supervisão pediátrica.
Rafaela tem 17 anos. Não gosta de mim e pede-me desculpa, diz-me que “talvez noutras circunstâncias”. Mas fala comigo, em nome da tal tolerância em que acredita e que defende. Respeito-a mais ainda por isso. Diz que tem uma vida completamente normal, consciente de algumas regras básicas e muito simples que, aliás, todos deveriam cumprir, portadores ou não de VIH. Por exemplo, quando tem os lábios gretados não partilha bolachas ou comida com ninguém, a sua escova de dentes é só sua, nas suas giletes ninguém toca. Em casa, cada uma tem o seu nécessaire identificado e isso é sagrado.
Na escola, as amigas não sabem que está infectada com VIH e diz que não lhe custa assim tanto manter o segredo – no entanto, não esquece uma situação em que, muito miúda, foi denunciada, provavelmente apenas para a proteger. Garante que, se contasse, sabe “perfeitamente” que seria marginalizada, como acontece com tantos outros, mesmo por outros motivos. E este era o seu sonho, que as pessoas fossem tolerantes.
Sabe tudo sobre a doença. Toma um comprimido por dia, “os médicos dizem que sou uma sortuda. Faço análises de três em três meses e a minha carga viral está sempre indetectável”, diz.
Como no filme, Rafaela fala em culpa. Mas não é a única. Mesmo inconscientemente, todos procuram um culpado. É um processo comum e faz parte da gestão da doença. Como as quatro etapas de qualquer doença crónica, como o cancro ou a hemofilia, por exemplo: o conhecimento, a negação, a revolta e a aceitação. Pelo caminho, muitos porquês.
José, mais ou menos a brincar, diz que “dar a cara é o mesmo que darem-lhe um tiro”, afirma que “nós [os pais] somos os culpados”. E é este o terror que vive, o dia em que terá de explicar à sua doce Joaninha “aquilo que aconteceu”. O dia em que ela vá pedir-lhe explicações e responsabilizá-lo, eventualmente, por achar que não tem namorado, que não vai ter marido, que não vai ter filhos. Sobretudo porque ele, homem, se sente, de facto, culpado. E assume isso. “Pense comigo, a Alice é mãe adoptiva do Tiago, não foi responsável por ele ter sida. A Naná tem um atraso, nunca vai perceber exactamente o que tem. A Ivana é avó. Eu não, eu sou o pai.”
Mas não terá de ser assim. Hoje, com o tratamento certo, uma mulher pode ter filhos sem que estes sejam infectados com VIH. Aqui mesmo no campo de férias há a prova disso, a tentar enfiar-me um bocado de uma deliciosa pizza pela boca abaixo. Graça Rocha diz que a probabilidade de uma criança filha de mãe infectada nascer saudável já ronda os 99%. E a Joaninha do sorriso aberto vai fazer o seu percurso.
Conviver
“Em Portugal há 45 mil pessoas diagnosticadas com VIH, mas o rastreio tem de continuar a ser feito”, diz a pediatra. Em Coimbra, actualmente, estão a ser tratadas 21 crianças, por exemplo. Quanto mais cedo for detectada a doença, melhor qualidade de vida terá o paciente – uma realidade a não esquecer.
Trinta por cento das mulheres descobrem que contraíram VIH durante a gravidez. Felicidade conta que estava grávida da segunda filha quando recebeu uma carta do hospital com o resultado da autópsia do marido: sida. “O que é que eu ia fazer? Já nem lhe podia bater nem gritar com ele.” Agora só quer saber se é verdade que dentro em breve estará disponível um tratamento de uma injecção por ano. Não é por ela, é pela filha.
A transmissão do vírus é feita pelo sangue ou pelas relações sexuais. A mãe pode contagiar o filho na gravidez, no parto ou durante a amamentação.
É também por isso que, tal como a maioria dos tratamentos – que têm um custo médio mensal para o Estado entre 500 e 800 euros –, o aleitamento é grátis até ao primeiro ano de vida.
Como o José pode ver, também as mães se sentem culpadas e querem apaziguar as suas dores, mesmo sabendo que há quem tenha contraído a doença em transfusões de sangue. No filme “Filadélfia”, Melissa, outra advogada da firma de Andy com VIH, ficou doente depois de ter sido sujeita a uma transfusão, por ter perdido muito sangue ao dar à luz o seu segundo bebé. E testemunha perante o juiz: “Não me considero diferente de ninguém com esta doença. Não sou culpada, não sou inocente, apenas tento sobreviver.”
E é também isto que torna este campo de férias, organizado pela Associação de Saúde Infantil de Coimbra e pelo Hospital Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, em parceria como o Hospital de Santa Maria, tão especial. Aqui pode falar-se de tudo. Mesmo ou talvez por ser impossível distinguir quem é e quem não é portador de VIH. São todos iguais: homens, mulheres, rapazes e raparigas, avós, gente dos quatro anos aos cabelos brancos e pele bonita de rugas.
Como diz Catarina, “há muitos campos de férias, mas os outros têm monitores, não conheço mais nenhum onde se possa estar em família. As minhas netas não infectadas aprendem coisas sobre as infectadas que lá fora não aprenderiam e vão crescendo a saber que não devem discriminar”.
Em “Filadélfia”, o tribunal acaba por condenar a firma de advogados a pagar uma indemnização avultada a Beckett. Entre os valores, recordo um, uma pequena parcela do total, devida apenas por “humilhação”, aquilo que já quase todos nesta reportagem sentiram: 100 mil dólares. Hoje, depois de todas as correcções, este valor corresponderia a um pouco mais de 151 mil euros. Ou seja, seria este o valor que qualquer tribunal poderia condenar cada um de nós a pagar pela humilhação, pela intolerância ao outro. Se não existissem segredos.