Refugiados. Começou a longa marcha pela dignidade

Refugiados. Começou a longa marcha pela dignidade


Impedidos de embarcar nos comboios, mais de mil partem a pé para a Áustria. Polícia húngara usa gás lacrimogéneo e bastões contra migrantes.


São mil pessoas, talvez mais, que após vários dias acampadas dentro e ao redor da estação ferroviária de Keleti, em Budapeste, e que impedidas de embarcar nos comboios internacionais que partem para o Norte e Oeste da Europa, se puseram ontem em marcha até à Áustria. Vão a pé, com a roupa no corpo e os poucos pertences que trouxeram quando fugiram dos seus países. São maioritariamente sírios, mas também afegãos, líbios, iraquianos, eritreus, uma panóplia imensa de nacionalidades, todos fugidos de guerras, conflitos sectários e repressões violentas.

Dezenas de agentes vão a escoltá-los, sem darem mostras de os tentarem travar, pelo menos até ao fecho desta edição. Mas como as últimas semanas têm comprovado, a cada dia há novas tácticas das autoridades de cada país da UE para o que dizem ser a protecção dos seus interesses e o garante da ordem – seja desviar comboios internacionais para forçar os refugiados a desembarcar e colocá-los em campos improvisados, como aconteceu entre quarta e quinta-feira na Hungria, seja para os marcar ao estilo do Holocausto com números a tinta permanente nos braços, como aconteceu na República Checa. 

O grupo de mil desesperados começou a caminhada na manhã de sexta-feira. À sua frente estendem-se mais de 180 quilómetros até à fronteira Norte da Hungria, na tentativa de terem um acolhimento mais caloroso na Áustria, muitos na esperança de chegarem a cidades da Alemanha – o país logo ali, o estado-membro dos 28 que mais refugiados já acolheu desde que a crise humanitária começou a atingir proporções catastróficas aos olhos dos líderes políticos e chefes de Estado da Europa. “A seguir Viena, a seguir Alemanha”, garantiu um dos refugiaos ao correspondente da BBC. “Não vamos parar. O nosso objectivo é a Alemanha, é ir ter com a nossa mamã, a Merkel.”

Entraves Nem todos estão alinhados com a chanceler. Depois das cenas presenciadas e noticiadas por dezenas de jornalistas em Keleti, uma das principais estações da capital húngara que foi palco de cenas abjectas esta semana, os chefes dos governos da Hungria, da República Checa, da Eslováquia e da Polónia tiveram uma reunião de emergência e criaram uma frente comum, anunciando na sexta que rejeitam qualquer quota proposta ou imposta pela Comissão Europeia de Jean-Claude Juncker. “Recusamos qualquer proposta que leve à introdução de quotas obrigatórias e permanentes para medidas de solidariedade”, declararam em comunicado. Isto numa altura em que o chefe do executivo comunitário europeu, perante mais uma semana de desgraças, de afogamentos no Mediterrâneo e no Egeu, de abusos das autoridades, de manifestações em massa dos refugiados, pretende apresentar na próxima semana novos números de acolhimento: não os 40 mil que inicialmente propôs, e que uma série de países recusou, mas pelo menos 120 mil dos muitos mais que já chegaram e que vão chegar à UE até ao final do ano. 200 mil que devem ser distribuídos equitativamente por todos os 28 membros, diz Juncker – com poucas chances de conseguir essa partilha de esforços de forma pacífica.

Abusos Num país que já ergueu um muro de 175 quilómetros de comprimento e quatro metros de altura na sua fronteira com a Sérvia, não é de estranhar a resposta das autoridades ao fluxo crescente de migrantes que deixou de arriscar a travessia mortífera do Mediterrâneo para atravessar a pé o território europeu até à primeira porta de entrada na UE vindos do Sul. É a Hungria esse país e essa porta e é na Hungria que a maioria das cenas mais macabras da última semana teve lugar.

Após circularem imagens dos refugiados a tentarem resistir às autoridades húngaras, com um casal com um bebé a ser arrastado pela polícia nos carris, ontem surgiram imagens das autoridades a tentarem controlar à bastonada as centenas de refugiados que foram levados contra vontade para um campo improvisado perto da cidade de Bicske – recorrendo depois a gás lacrimogéneo. Isto um dia depois de o primeiro-ministro, Viktor Órban, ter declarado que a questão dos refugiados “não é um problema europeu nem húngaro”, é “um problema alemão”, pelo facto de a maioria desejar instalar-se nesse país. Merkel continua a bater-se pela distribuição justa destas pessoas, antevendo-se que 800 mil cheguem à Alemanha até ao final do ano.