Djaimilia Pereira de Almeida.  “Vivi o cabelo como um  drama intenso que se foi tornando uma comédia”

Djaimilia Pereira de Almeida. “Vivi o cabelo como um drama intenso que se foi tornando uma comédia”


O pente é a caneta com que, ao espelho, se vai escrevendo o tratado das nossas inquietações. Se para uns é fácil, para Mila foi uma luta e o início de uma viagem.


Nasceu em Luanda, mas cedo chegou cá, e os anos viram-na crescer nos arredores de Lisboa, antes que fosse tempo de ser ela a devolver um olhar e remontar o percurso que a fez adulta. Está só a começar, e depois de um empenhado percurso académico, levou o melhor dali, um domínio soberbo da língua, libertando-se das regras de um jogo que estava a ficar demasiado previsível. A imagem que vê no espelho não é inteiramente do seu mundo, começando por aquele cabelo armado, um desafio que teve de encarar sozinha. Dessa luta, Djaimilia Pereira de Almeida tomou balanço para um relato confidente que de simples detalhes monta uma aventura.

Que relação tem “Esse Cabelo” com o que ficou escrito para o mundo académico? 
Doutorei-me em 2012 e acabei por me afastar do meio académico. É com espanto que vejo as pessoas relacionarem o livro que escrevi com esse percurso. Se há um ciclo que é encerrado com a escrita deste livro, é a minha ligação à universidade. E a principal razão foi a consciência que cresceu em mim de que não estava interessada em escrever de um certo modo. Também não estava interessada em ser avaliada de acordo com parâmetros que me parecem extrínsecos ao trabalho intelectual como o entendo. Este tipo de rankings e de avaliações, tal como são utilizadas para medir o progresso nas humanidades, pervertem toda a ideia do que possa ser um estudo sério e aprofundado nesta área. 

Que ideia é essa?
Que, para começar, só pode ter os seus resultados avaliados após um longo tempo e eles não podem ser mensuráveis a partir de critérios de popularidade, ou pelo número de citações. Generalizando um pouco, temos aquele grande slogan: ou se publica ou se perece (publish or perish). Estou cada vez mais convencida de que se publica e se perece, como se publicar fosse uma espécie de morte. E mesmo o que escrevi na universidade já lutava um pouco contra isso. Hoje é raro encontrar uma escrita livre e apaixonada em humanidades.

Que influências literárias guiaram este percurso?
A minha carreira de leitora é pautada por obsessões. Mais do que pessoas, são livros de certos autores. [Jean-Jacques] Rousseau, por quem tenho uma fixação completa. Lévi-Strauss, sobretudo os “Tristes Trópicos”. Ou Michael e Anne Dummett. Michael é um filósofo analítico inglês que ficou famoso por estudar a obra de Gottlob Frege – filosofia da matemática e assim. Mas foi, além disso, um grande activista dos direitos raciais na Inglaterra. Escreveu um único livro sobre o assunto, já velhinho, apesar de ter dedicado a vida inteira a esta causa: “On Immigration and Refugees”. Também a filósofa norte-americana Danielle Allen, que escreveu um livro no qual me inspirei também muito: “Talking to Strangers”. Em português, acrescentaria as “Memórias” do Raul Brandão. Toda a obra é muito importante para mim, mas sobretudo as “Memórias”, pela fusão entre realidade e ficção. Essa confusão interessa-me. Mais um: o autor que estava a ler quando senti vontade de escrever este livro, em 2012. As memórias do Walter Benjamin em Berlim. Ou outras referências como o Kanye West, Wu Tang Clan e até a Beyoncé, esticando um pouco a corda. Há uma mistura particular de Kanye West e Lévi-Strauss e outras referências eruditas da qual este livro brotou.

Em Portugal parece haver um vazio em relação ao momento pós-colonial e às transformações que se seguiram. Que impressão tem da forma como a cultura portuguesa encara esta questão? 
A experiência do retorno não é a minha experiência. A da minha família não é a de pessoas que vieram para Portugal naquela altura por uma ponte aérea. É uma experiência de pessoas que ficaram e vieram mais tarde. O que me parece é que não existe um acompanhamento da experiência que foi vivida por aquela que foi pensada. Talvez seja lapso meu, mas acho que não há pensamento suficiente dessa questão. Existe a ficção mais ou menos nostálgica e saudosista, mas não sei se houve uma profunda reflexão sobre esse período. Vão aparecendo certos pontos luminosos, luzes pelo caminho, como o livro da Dulce Maria Cardoso [“O Retorno”]. A certa altura seria natural que pessoas com histórias de vida parecidas fizessem livros. Não tenho uma noção exaltada do papel do meu livro nesse contexto.

Se este livro podia ser de outra pessoa com a mesma experiência, quais são os pontos cardeais que a orientam?
Um deles é o facto de ter crescido num sítio onde não nasci. De ter do sítio onde nasci uma profunda ignorância. Não é um aspecto peculiar da minha vida, mas comum à de muitas outras. Simétrico a esse ponto está o momento em que essa falta de curiosidade e essa ignorância se transformam numa necessidade de saber mais sobre esse sítio onde nasci. Apesar de me ter começado a ressentir da ignorância que tinha a respeito de África até aí, fui percebendo, já ao escrever, que não me valeria de nada enfiar-me num avião e ir até Angola à procura fosse do que fosse. “Esse Cabelo” é um livro que tenta parodiar esta ideia de uma espécie de regresso às origens. É uma das minhas ambições: mostrar que não posso coreografar a minha autodescoberta. Faz sentido a analogia de que uma pessoa encontrar-se seria como partir à procura da Índia e descobrir a América.

Angola aparece cada vez mais em Portugal. Não é só a cultura, mas um fenómeno de uma certa colonização económica, num movimento inverso. Como tem sido acompanhar este movimento?
A sensação que tive ao longo dos anos foi de que não era eu que estava a ir à montanha, mas a montanha que estava a vir ter comigo. Se por um lado, e do ponto de vista da colonização económica que referiu, me parece que tem efeitos nocivos claros e que importa ter em conta… Quer dizer, não me parece que seja negativo o facto de cada vez mais jornais portugueses estarem na mão de capital angolano, desde que possam publicar o que entenderem sobre Angola e qualquer outro tema. No momento em que isso não é assim, parece-me que se torna altamente nocivo. Quanto a esta invasão da cultura angolana e mudança generalizada de gostos e referências, parece-me que isso é salutar. O meu vizinho do lado acordar-me à meia–noite com kizomba, isso dá-me gozo . 

Isto tem reflexo nas mentalidades, há maior abertura?
Até aqui havia uma enorme quantidade de africanos residentes em Portugal e de portugueses africanos que simplesmente não se sentiam representados de maneira nenhuma nem no que liam nos jornais, nem no que viam na televisão, nem em lado nenhum. Parece-me significativo que, a certa altura, surjam pessoas com aspecto diferente a fazerem todo o tipo de coisas e a serem apreciadas por isso em larga escala. Quanto mais, melhor. Mas isso não tem de ser acompanhado pelo outro tipo de efeitos nefastos.

A aparência, o livro como uma odisseia da protagonista num esforço para tentar domar o cabelo… Que papel é que o ideal normativo de beleza ocidental desempenhou no seu crescimento?
Se não tivesse crescido tendo no meu cabelo um inimigo, não havia livro. Acho importante falar disto porque é uma coisa sobre a qual se fala pouco. Há algumas figuras por quem tenho a maior simpatia, figuras públicas que têm trazido esse assunto para a praça pública, mas passa despercebido. Tendo o cabelo sido sempre um enorme problema, vivi-o como um drama interno intenso que se foi transformando também numa comédia, porque a certa altura o cabelo estava tão despenteado que só podia rir, mas era um sorriso no meio de lágrimas. A certa altura apercebi-me de que isto era a experiência de muitas outras pessoas. Percebi-o através da internet. Descobri um movimento de raparigas, em Portugal e fora. Descobri-as primeiro nos EUA, mas cheguei a raparigas portuguesas que falam sobre o seu cabelo, sobre a experiência de recusar desfrisar o cabelo ou aproximá-lo dos padrões de beleza europeus, e voltar a usá-lo com o seu aspecto natural. O livro é escrito com a intenção de falar com estranhos e de fazer amigas. 

Há alguma violência a que estas raparigas são sujeitas devido à sua aparência?
Sim. Há, pelo menos, uma intenção premeditada de fingir que certas pessoas não existem, que certas pessoas não têm lugar e que não vendem nem compram. Pessoas com um tipo de cabelo, cor da pele, que vivem em certos sítios e partilham certas referências… Parece-me que tudo o que puder ser feito para mostrar à sociedade o erro que comete é pouco.

Como encara os actuais receios da Europa em relação aos refugiados?
O termo de Thatcher é “swamped”, o medo de a Inglaterra ser inundada. Refiro-me a isto no livro: o medo de um país poder ser inundado. É um medo irracional, um medo que pode ser destruído com argumentos racionais. O que se contrapõe a isso é uma mensagem de Michael Dummett que fala do dever que nos assiste, por existirmos, de prestar auxílio às pessoas que não têm como se defender. O assunto tem sido tratado com uma enorme cobardia. Fico aterrada ao perceber que os dias passam e não parece haver uma intenção de tomar medidas concretas.