Apps que indicam a direcção de Meca, páginas da internet com os melhores preceitos islâmicos e até concursos de misses. Ajmal Masroor, um dos 500 muçulmanos mais influentes do mundo, explica ao i porque seria “idiota” o Islão recusar o contributo da tecnologia.
Em Janeiro de 2015, numa decisão envolta em polémica, um tribunal turco deu ordem para bloquear todas as páginas do Facebook que ofendessem o profeta Maomé. Embora a Turquia seja um estado secular desde 1924, “a maioria das pessoas que eu conheço ainda fazem uma ligação entre o Estado e a religião”, comenta Kübra Karaoglu, uma jovem turca de 21 anos contactada pelo i. O Twitter e o YouTube também têm sofrido restrições nos últimos anos.
Mas este movimento não tem sentido único. Os meios tecnológicos também têm sido usados para divulgar o islão e adaptá-lo às novas circunstâncias. Para saber se as novidades estão ou não de acordo com as regras islâmicas deve--se consultar um imã – especialista religioso –, que após reflectir sobre o tema transmite a sua deliberação – a fatwa. O tema pode ir de algo tão corriqueiro como se é permitido ver um episódio da série “Game of Thrones” a algo tão sério como a legitimidade do suicídio por bomba.
Em matéria religiosa, tradição e tecnologia não estão necessariamente em conflito. Dirigidas às novas gerações, há apps para smartphones que permitem aos fiéis levar sempre as regras e os livros sagrados no bolso das calças. O “Islamic Compass” utiliza o GPS para detectar a posição do utilizador, indica em que direcção deve rezar (sempre virado para a Kaaba, em Meca) e calcula as horas das orações. Já o “Muslim Pro”, além das funcionalidades da aplicação anterior, inclui o Alcorão completo em árabe com traduções em 35 línguas e em ficheiros de audio, bem como um calendário islâmico e um mapa de restaurantes halal (que cumprem as normas prescritas pelo islão para as comidas e bebidas) e de mesquitas próximas. É um negócio que faz todo o sentido: em 2013, os Emirados Árabes, a Arábia Saudita e Israel estavam entre os 15 países com maior percentagem de pessoas com smartphones.
media são bem-vindos Há muito que o islão recorre também a meios de comunicação como a rádio e a TV para espalhar a sua mensagem – não só em países muçulmanos, mas também no Ocidente. Na Finlândia, a estação de rádio YLE dividiu as leituras do Alcorão em 60 segmentos de meia hora, que incluem a discussão dos excertos entre o tradutor e o imã Anas Hajjar, líder da comunidade muçulmana finlandesa. A iniciativa, que começou em Março deste ano, “pretende aumentar os conhecimentos das pessoas sobre o Alcorão e a cultura muçulmana na Finlândia”, indicou a BBC na altura.
Já no pequeno ecrã passam de programas em que se discutem fatwas a concursos da Miss Mundo Muslimah. Dirigidos ao público feminino, e premeiam não apenas a beleza mas a muçulmana mais pia.
Também há novidades na internet, como o Alchemiya, um canal televisivo online que pretende centrar-se em documentários e reportagens sobre o mundo muçulmano. Um dos fundadores é Ajmal Masroor, um respeitado membro da comunidade muçulmana na Europa e ele próprio imã. Ao i explica que quis derrubar estereótipos através de uma plataforma que mostrasse o contributo positivo dos muçulmanos para o mundo.
partilhar em vez de impor Masroor nasceu no Bangladesh em 1970, mas foi viver com os pais para o Reino Unido quando tinha apenas um ano. Sete anos depois regressariam à terra natal mas durante a adolescência de Ajmal a família acabaria por se instalar no Reino Unido a título definitivo. Hoje é mestre pela Universidade de Londres e considerado um dos 500 muçulmanos mais influentes do mundo. Activista social e político, tem um programa na BBC, já escreveu no “The Guardian” e conduz as orações em quatro mesquitas londrinas à sexta-feira. Considera-se por isso “bem integrado”, mas ainda assim acredita que a desconfiança persiste – e dá como exemplo as rusgas a que as casas do seu pai e do seu irmão foram sujeitas.
“99% dos muçulmanos não se identificam com a imagem que se veicula da sua cultura”, refere. Ajmal Masroor quer educar as pessoas sobre o que é o islão, “para que não se tornem animais só por medo do que desconhecem”. Acredita que há uma obsessão com o terrorismo e que “a Europa vai fazer com os muçulmanos o mesmo que fez com os judeus”.
Foi precisamente para combater esta tendência que fundou o Alchemya. De resto, considera que seria idiota não usar a tecnologia. A internet “é uma ferramenta que permite partilhar em vez de impor”, e é justamente isso que Masroor quer fazer: partilhar com muçulmanos e não muçulmanos conteúdos que possam combater os preconceitos e a ignorância.
interpretação cinzenta Mas, se é verdade que a tecnologia está cada vez mais ao serviço da religião, há também uma forte corrente do islão que se opõe radicalmente às modernices. Kubra, a jovem turca contactada pelo i, chegou a ser acusada por familiares de ter sido contaminada pelas ideias ocidentais depois de participar num programa de intercâmbio na União Europeia.
Apesar de existir apenas um islão – há diferentes formas de o viver enquanto muçulmano. Afinal trata-se da religião de evolução mais rápida no mundo, contando já com mais de 1,6 mil milhões de pessoas pelo mundo. O nível de restrições e de tolerância varia, pois, de caso para caso. Só no que toca à pornografia todas as autoridades islâmicas parecem estar de acordo: é pecado e ponto final. Mas algumas áreas da tecnologia encontram-se no limbo e abertas a interpretação. A autoridade islâmica egípcia proibiu a utilização de chats online em 2014, por “serem uma das ferramentas do Diabo e uma forma de espalhar discórdia e corrupção”. A interdição provocou polémica, especialmente entre os jovens. No Irão, uma fatwa emitida pelo aiatola Khamenei levou ao bloqueio da aplicação para telemóveis WeChat, semelhante ao WhatsApp. Mas a lista de restrições continua. Nalgumas zonas rurais da Índia, como Sunderbadi, as mulheres muçulmanas foram mesmo proibidas de usar telemóvel. E a impossibilidade de controlar os conteúdos blasfemos levou tanto o Paquistão como o Irão a bloquearem indefinidamente o acesso ao YouTube.
Entre 1996 e 2001, o regime dos talibãs do Afeganistão pôs em prática uma série de medidas a regular os costumes que abrangiam tanto a tecnologia como o entretenimento. A vasta lista de proibições incluía a música em locais públicos e em casamentos. O motivo? A música afasta os pensamentos de Deus, alegaram. Além disso, foram fechados os cinemas e interditos os programas televisivos, assim como o uso de internet, regras que se aplicavam tanto a nativos como a estrangeiros. O problema, explicaram as autoridades, não era a internet em si, mas os conteúdos obscenos, vulgares e anti-islâmicos que aí se podem encontrar.
Hoje, páginas como www.fatwa-online.com ou www.central-mosque.com, ainda que fazendo uso do suporte tecnológico da web, apresentam a versão mais retrógrada do islão. Sob a rubrica “Society and the World” encontram-se artigos como “Guardar fotografias para memória futura” ou “Por que razão o islão proíbe a música”. A depilação também está interdita, assim como livros de ficção com cenas de magia – Harry Potter, pois claro, é uma das vítimas.