As crianças e a guerra ou a perda da inocência


A guerra é o fenómeno mais mortífero e injusto para a população civil, designadamente para as crianças. Além das consequências imediatas, muitos outros efeitos estão associados a viver e crescer num ambiente onde matar e estropiar é a regra. Os nossos filhos não estão lá, mas sabem o que se passa. Quanto e como?


“Senta-te aqui mais perto da lareira
Vou-te contar a história verdadeira…”
Sérgio Godinho, “Álbum de fotografias”

A guerra está presente, em força. As imagens provenientes da Síria, do Sudão, da Nigéria, do Iraque, do Afeganistão ou do território dominado pelo autoproclamado Estado Islâmico são transmitidas até à exaustão e mostram ao mundo, às famílias e às crianças onde o belicismo pode chegar, designadamente o show de armas novas, destrutivas, de soldados a avançarem e a despedaçarem inimigos, crueldades sem fim com requintes todos os dias novos de malvadez.

Não vou emitir juízos de valor nem comentários pessoais sobre a justeza, a necessidade e a adequação temporal e histórica das várias guerras que a história proporcionou, mas ressalvo, como “declaração de interesses”, um gene que recebi de algum antepassado que me leva a sentir urticária quando penso em regimes castrenses, salamaleques militares, orçamentos bélicos ou dia-a-dia em quartéis, para lá da náusea que me provoca o maior negócio a nível mundial: o comércio de armas legais e ilegais. 

Enquanto os adultos se guerreiam, muitas crianças são apanhadas no meio da refrega, num conflito para o qual não foram ouvidas nem achadas, e que não entendem. Ficamos impressionados com o drama das populações civis – sejam as casas destruídas em Gaza, sejam as filas de refugiados nas fronteiras europeias (agora amuralhadas) ou as enfermarias dos hospitais sírios e iraquianos. Não foi há muito, as imagens de mães e pais com crianças ao colo, sem saber para onde ir, sem haveres, sem tecto, e sobretudo ignorando o porquê de tudo isso, que sobraram dos baús de recordações das guerras mundiais. Isto sem falar do grande número de crianças feitas soldados, de arma na mão e com o objectivo único de matar.

Ainda é pouco, todavia, o que se diz quanto às crianças vítimas da guerra e do impacte que esta tem no seu percurso de vida. Vêmo-las, nas filas angustiantes dos refugiados, nos escombros dos prédios bombardeados, a vaguear como zombies nas cidades em ruínas. A guerra consegue acumular a fome, a violência física e a violência psicológica, o desprezo pelos cidadãos, o desrespeito pelos direitos humanos, criando miséria e pobreza, mal-estar e feridas insanáveis. Mas cada criança se dilui na imensidão do horror e na frieza das estatísticas, e o seu destino faz parte do imenso movimento grupal, pelo que o seu sofrimento nos atinge apenas de raspão. Por muito resistente que seja a espécie humana e por muitos mecanismos de defesa que tenha, a infância fica comprometida para sempre, gerando–se adultos precoces, desenraizados e desencantados, imunes a quaisquer promessas e habituados a resolver por si as situações problemáticas, recorrendo quase automaticamente à violência.

Quando as crianças portuguesas estão a ver o telejornal ou a folhear algum jornal ou revista com artigos sobre a guerra, na (ainda) paz do nosso país, aproveitemos para, de uma maneira didáctica e sem as assustar, falar directamente das razões de ser daquelas imagens, para que entendam que os conflitos podem e devem ser resolvidos por meios pacíficos e através do diálogo, com recusa de qualquer filosofia bélica, racista, xenófoba ou culto de superioridade de qualquer país ou povo. Aproveitemos para exaltar o valor da liberdade e da paz, os bens essenciais e determinantes para o desenvolvimento civilizacional e para a qualidade de vida. O que não podemos é fingir que desconhecemos o assunto e assobiar para o lado, como se fosse possível ignorá-lo. Temos de falar sobre isso com os nossos filhos, para que cresçam empáticos, defendam com maior veemência valores de paz e cooperação, sejam intolerantes com a intolerância, e isto sobretudo pelo respeito que lhes devemos e a responsabilidade que temos enquanto pais e educadores.

As crianças merecem que lhes contemos a verdade sobre os horrores da guerra. Claro que apenas a verdade suficiente. Filtrada. Com afecto, mas sem mentiras ou fantasias. Mas que lhes contemos. Não estivemos nós, durante 13 anos, envolvidos numa guerra estúpida? Não sofreram tantas famílias? Ou já nos esquecemos disso, nestes tempos vorazes de memória curta?

Pediatra
Escreve à terça-feira

As crianças e a guerra ou a perda da inocência


A guerra é o fenómeno mais mortífero e injusto para a população civil, designadamente para as crianças. Além das consequências imediatas, muitos outros efeitos estão associados a viver e crescer num ambiente onde matar e estropiar é a regra. Os nossos filhos não estão lá, mas sabem o que se passa. Quanto e como?


“Senta-te aqui mais perto da lareira
Vou-te contar a história verdadeira…”
Sérgio Godinho, “Álbum de fotografias”

A guerra está presente, em força. As imagens provenientes da Síria, do Sudão, da Nigéria, do Iraque, do Afeganistão ou do território dominado pelo autoproclamado Estado Islâmico são transmitidas até à exaustão e mostram ao mundo, às famílias e às crianças onde o belicismo pode chegar, designadamente o show de armas novas, destrutivas, de soldados a avançarem e a despedaçarem inimigos, crueldades sem fim com requintes todos os dias novos de malvadez.

Não vou emitir juízos de valor nem comentários pessoais sobre a justeza, a necessidade e a adequação temporal e histórica das várias guerras que a história proporcionou, mas ressalvo, como “declaração de interesses”, um gene que recebi de algum antepassado que me leva a sentir urticária quando penso em regimes castrenses, salamaleques militares, orçamentos bélicos ou dia-a-dia em quartéis, para lá da náusea que me provoca o maior negócio a nível mundial: o comércio de armas legais e ilegais. 

Enquanto os adultos se guerreiam, muitas crianças são apanhadas no meio da refrega, num conflito para o qual não foram ouvidas nem achadas, e que não entendem. Ficamos impressionados com o drama das populações civis – sejam as casas destruídas em Gaza, sejam as filas de refugiados nas fronteiras europeias (agora amuralhadas) ou as enfermarias dos hospitais sírios e iraquianos. Não foi há muito, as imagens de mães e pais com crianças ao colo, sem saber para onde ir, sem haveres, sem tecto, e sobretudo ignorando o porquê de tudo isso, que sobraram dos baús de recordações das guerras mundiais. Isto sem falar do grande número de crianças feitas soldados, de arma na mão e com o objectivo único de matar.

Ainda é pouco, todavia, o que se diz quanto às crianças vítimas da guerra e do impacte que esta tem no seu percurso de vida. Vêmo-las, nas filas angustiantes dos refugiados, nos escombros dos prédios bombardeados, a vaguear como zombies nas cidades em ruínas. A guerra consegue acumular a fome, a violência física e a violência psicológica, o desprezo pelos cidadãos, o desrespeito pelos direitos humanos, criando miséria e pobreza, mal-estar e feridas insanáveis. Mas cada criança se dilui na imensidão do horror e na frieza das estatísticas, e o seu destino faz parte do imenso movimento grupal, pelo que o seu sofrimento nos atinge apenas de raspão. Por muito resistente que seja a espécie humana e por muitos mecanismos de defesa que tenha, a infância fica comprometida para sempre, gerando–se adultos precoces, desenraizados e desencantados, imunes a quaisquer promessas e habituados a resolver por si as situações problemáticas, recorrendo quase automaticamente à violência.

Quando as crianças portuguesas estão a ver o telejornal ou a folhear algum jornal ou revista com artigos sobre a guerra, na (ainda) paz do nosso país, aproveitemos para, de uma maneira didáctica e sem as assustar, falar directamente das razões de ser daquelas imagens, para que entendam que os conflitos podem e devem ser resolvidos por meios pacíficos e através do diálogo, com recusa de qualquer filosofia bélica, racista, xenófoba ou culto de superioridade de qualquer país ou povo. Aproveitemos para exaltar o valor da liberdade e da paz, os bens essenciais e determinantes para o desenvolvimento civilizacional e para a qualidade de vida. O que não podemos é fingir que desconhecemos o assunto e assobiar para o lado, como se fosse possível ignorá-lo. Temos de falar sobre isso com os nossos filhos, para que cresçam empáticos, defendam com maior veemência valores de paz e cooperação, sejam intolerantes com a intolerância, e isto sobretudo pelo respeito que lhes devemos e a responsabilidade que temos enquanto pais e educadores.

As crianças merecem que lhes contemos a verdade sobre os horrores da guerra. Claro que apenas a verdade suficiente. Filtrada. Com afecto, mas sem mentiras ou fantasias. Mas que lhes contemos. Não estivemos nós, durante 13 anos, envolvidos numa guerra estúpida? Não sofreram tantas famílias? Ou já nos esquecemos disso, nestes tempos vorazes de memória curta?

Pediatra
Escreve à terça-feira