Maria Filomena Mónica. “Acho que António Costa está a fazer uma campanha desastrosa

Maria Filomena Mónica. “Acho que António Costa está a fazer uma campanha desastrosa


A terceira parte da entrevista a Maria Filomena Mónica.


Como falávamos há pouco, vota branco há vários anos.
Sim, há seis ou sete anos, porque ambos os partidos, quer o PSD quer o PS, disseram que iam modificar a lei eleitoral desta representação proporcional com as listas fechadas, mas nunca o fizeram nem vão fazer. Sabe porquê? Porque quando uma pessoa tem poder, não vai devolvê-lo. Como todos os sistemas políticos que conheço, desde 1820 até hoje, foram sempre fruto de revoluções armadas, foram sempre atingidos por uma espécie de pecado original que é: os cidadãos não criaram os regimes. O PC lutou contra o regime anterior, mas nós, eu por exemplo, não fiz nada para o salazarismo cair, foram os militares que fizeram, foi um golpe militar. Em 1851, que é o golpe da regeneração, foi o duque de Saldanha. Ao fazerem-no, como não têm o apoio da totalidade da população, os vencedores fecham-se na fortaleza e dizem ‘temos aqui o poder, vamos guardá-lo para nós’. E por isso todas as leis, mesmo a Constituição, são leis defensivas, deixa cá ver se não nos tiram o poder. A génese dos regimes é deplorável, porque são golpes. Gostaria que o 25 de Abril e a instauração da democracia tivessem feito uma transição mais lenta no sentido da democracia, de dar mais voz ao cidadão.

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E quanto às presidenciais?
Não me interessa. [risos] Zero, zero. Não sei se é da idade. Não vejo nenhum candidato que valha, nem um. Há os que detesto mais, há uns incompreensíveis. Não percebo de onde aparece a Maria de Belém, não percebo.. Se calhar geriu bem os hospitais, sabe que mil euros a dividir por cinco dá 200 euros, esse género de coisas ela saberá. O meu ex-reitor, o [Sampaio da] Nóvoa, nunca notei que tivesse aquela tendência romântico-pateta, deu-lhe para citar trovadores do século XX cuja poesia é mais ou menos abaixo de cão, portanto nem pensar, esta lamechice pequeno-burguesa eu dispenso. Hmmm, quem é que há mais?

O Henrique Neto?
O Henrique Neto respeito, é um homem que tem muito valor, criou uma indústria boa, capaz de exportar, que é a de moldes de plástico e tenho respeito por ele, mas não tem a menor chance de ganhar, zero.

E à direita? 
O Santana Lopes [que esta quinta-feira desistiu da candidatura] não. O Marcelo é alguém com quem gosto de estar e de conversar, diverte-me imenso e vejo-o aos domingos, embora ache que ele agora está muito repetitivo. Mas não é um cargo para ele … Dantes pensava que sim. Agora que se aproximam as eleições, de todos era aquele em quem votaria mais facilmente, mesmo sendo ele de direita e católico e essas coisas todas. Mas agora não sei. Pensando melhor, se o Jaime Gama se candidatasse, o que não me parece que vá acontecer, votaria nele. Sei que não tem ponta de carisma. Acontece que, por altura do lançamento de um livro meu há dois nos EUA, conversei bastante com ele em Boston e fiquei a admirá-lo. E o cargo condiz com o seu temperamento. E é socialista: só tenho pena que se tenha sentido na necessidade de ir visitar o Sócrates à prisão…

Tem mais amigos à esquerda ou à direita?
Talvez à direita, pensando bem. Não tenho muitos amigos íntimos, tenho conhecimentos, mas assim amigos são poucos. Não sei, você considera o Vasco Pulido Valente ou o Rui Ramos ou a Fátima Bonifácio de direita? A Fátima agora deu-lhe para ser de direita…

Se for pelos costumes de conservadorismo sim, o Rui Ramos é mais conservador, não sei se é contra o aborto ou não…
Não, ele é liberal, mas é de direita, sim. Sou muito amiga do Rui, convenci-o a ir para Oxford, coisa que ele nem queria. Tem muito boa cabeça, mas em Portugal era muito fácil ele começar a achar-se um génio incompreendido e disse-lhe logo ‘Em Oxford há milhares iguais a si’. A Fátima era de extrema-esquerda e agora também é de direita e é muito minha amiga … O Vasco era PS e depois esteve na AD e continuo a considerá-lo meu amigo.

Já falam outra vez?
Não me quero pronunciar sobre isso. Mas considero-o um amigo. Olhe, tenho um amigo de esquerda que é o António Pedro Vasconcelos. E agora deu-lhe para ser muito mais de esquerda do que há dez anos.

Alguma vez foi convidada para ir para a Maçonaria?
Não, nunca fui convidada para nada a não ser para directora da Biblioteca Nacional, coisa que não quis. Gosto de estar na BN a ler, não gosto de mandar nos funcionários da BN.

E acha que eles de facto têm o poder de que se fala, a maçonaria e a Opus Dei?
Têm algum. Senti uma vez ou outra com candidatos meus. Tinha um amigo que era maçon que me falava muito bem de um candidato e eu levei um bocado a perceber, mas percebi. Quando esse meu amigo foi enterrado, o Oriente Lusitano ou lá como é que aquilo se chama deixa ir três ou quatro pessoas que não são da maçonaria, e entrei lá, estava cheia de curiosidade para ver como era aquele ritual fúnebre. E numa das pianhas, parecia um púlpito… Aquilo é como a Igreja Católica, cheia de rituais, e estava lá esse candidato a subir ao púlpito e percebi logo. Acho que têm poder, sim. Os maçons dizem que a Opus Dei domina tudo e a maçonaria diz que os católicos, mesmo que não sejam da Opus Dei, é que dominam. Tenho membros da minha família que são muito católicos que acham que isto tudo está dominado pela maçonaria, que ninguém sobe na vida a não ser que seja maçon. Eu subi a catedrática e nunca fui da maçonaria, portanto isso não se aplica.

A propósito do seu livro do Eça, há uns tempos alguém que estuda Pessoa dizia que há muita resistência de quem tinha os espólios em relação a quem acham que não são os grandes estudiosos.
No caso de Pessoa é porque há mais fontes, há mais coisas escritas. No caso do Eça de Queirós, nem há muitas fontes escritas nem há muitas cartas. O que há é um círculo de queirosianos, professores catedráticos que sobem na carreira à pala de serem especialistas em Eça e escrevem uns livros totalmente incompreensíveis que fazem com que os alunos do secundário detestem o Eça. Ninguém hoje lê os Maias, lêem os resumos e umas pateteiras que os professores aprenderam junto destes queirosianos das faculdades.

Como reagiram ao seu livro?
Quando foi o centenário da sua morte, em 2000, fui convidada para ir a Boston a uma conferência sobre o Eça e estavam lá 20 portugueses que não conhecia, todos a falar entre eles, sentados nas mesas e ninguém se sentava na minha mesa. Só percebi que estava a ser ostracizada para aí ao terceiro dia. O professor americano disse-me: Olhe, sabe, houve um problema com o seu convite, porque aos outros todos foi o Instituto Camões que pagou a vinda e o Instituto disse simplesmente que a si não lhe pagava. Nem sei se acabou por ser a universidade ou o instituto a pagar. Estava lá uma pessoa que não era da universidade de Coimbra – muitos destes queirosianos vêm de lá – o António Feijó, agora director da faculdade de letras, que me disse: ‘Você ainda não percebeu que eles a detestam? Eles têm esta quinta fechada e não querem que ninguém penetre lá. E como o livro ainda por cima vendeu imenso estão cheios de inveja’. E eu disse-lhe: ‘Olhe, ainda bem que me explica, vou já beber um vodka’. É a única coisa que me custa em estar doente é que não posso beber vodka agora. Bebia sempre um vodka às 19h. Pensei, quero lá saber, tenho mais em que pensar do que se os queirosianos gostam de mim… O Pessoa como poeta não me interessa muito, nem como pessoa – Pessoa como pessoa –, é mais o Eça. Decidi fazer aquela biografia e gostei imenso.

Sempre foi um pássaro livre mas estando metida num colégio de freiras. Como convivia com isso?
Você é que diz isso! Isto ainda parece que estou a autoelogiar-me. Devo ter um cromossoma qualquer ou uns genes que me fazem ser rebelde. Algumas coisas são méritos que adquiri ao longo da vida, por exemplo o facto de querer estudar, os meus pais não queriam que fosse para a faculdade. Nós pensamos muitas vezes que só os pobres é que são vítimas do seu destino social, mas não, os ricos também são. E depois deste livro [BI] reparei numa coisa estranha. É que mais importante do que a classe social, que para mim, como socióloga, é determinante na maneira de as pessoas pensarem e agirem, acho que é o sexo. Vocês não imaginam a quantidade de mulheres das classes humildes que nas sessões de autógrafos do BI vieram ter comigo a dizer ‘adorei o seu livro porque me revejo nele’. 

Teve uma infância muito castradora? 
Foram 14 anos no colégio de freiras em que me senti infeliz, mas não sabia que havia outro mundo, nem sabia que podia ascender intelectualmente. 

Quando descobriu isso?
Quando saí dali quis ir para a faculdade porque tinha um desejo de saber mais e não queria casar imediatamente aos 17 anos com um namorado rebelde que tinha ar de James Dean e de quem a minha mãe não gostava nada. Não foi racionalizada, sabe? Não me sentei um dia a dizer ‘não quero casar com ele’.
Mas para fugir acabou por ir para outro colégio de freiras, desta vez em internato, em Londres.
Sim, depois quando tive aquele namorado turbulento… imagino que aquilo fosse de facto um escândalo em Lisboa.

Porque tinham relações sexuais?
Não, de todo, nem tínhamos sítio! [risos] Se nem sabia como é que se engravidava, imagine… Não, eram beijos na boca, que chocavam toda a gente e mais alguma. Depois passei a ir ao cinema, a minha mãe arranjou uma senhora, a governanta, para ir connosco para ver se eu andava de mão dada. E portanto arranjei um namorado fora de todos os radares da minha mãe e fiquei fascinada por ele e comecei… não digo tentativas de suicídio, mas a ficar muito desequilibrada amorosamente. Comecei a perceber que gostava de relações sadomasoquistas, ele fazia-me sofrer, fingia que não se interessava muito por mim, desprezava-me, dizia que eu era uma miúda e nem era muito mais velho do que eu. Naquela altura o mais determinante era a classe social, mas esquecia-me, ou não é que me esquecesse, que ser mulher em vez de homem era menos importante do que a origem social. Foi só depois de anos a trabalhar em sociologia, ao escrever o BI, é que me apercebi que, pelo menos, são iguais, que o ser mulher é de facto um estigma de subalternidade ainda hoje e na altura era muitíssimo. E você perguntar-me-á: mas ser mulher no meio operário era o mesmo que ser mulher num meio rico? Não, não era a mesma coisa, porque apesar de tudo não passei fome, mas a pressão do macho sobre a fêmea era muito mais forte do que imagina. E no meu caso, como casei pela igreja, nem sequer me podia divorciar, e portanto separei-me judicialmente, mas chateava-me que a Igreja Católica tivesse essa atitude… Acho que fiquei ateia, agora sou agnóstica, porque dizia: esta educação que tive foi de tal forma opressiva que rejeito tudo e às vezes perguntam-me se não tenho saudades de deus, se agora que estou doente não penso nisso e na morte. Não, não penso, não me faz falta.

Quando se deu essa transição entre ser ateia e agnóstica?
Ser ateia era provocatório. O ateu diz ‘tenho a certeza de que deus não existe’, o agnóstico diz ‘não sei e não me interessa’, que é o meu caso, o assunto não me comove. Muita gente acha que me vou converter. Não posso dizer que não me vou converter nunca, mas é muito pouco provável.

A sua avó Maria, ateia no início do século XX, converteu-se quando ficou doente.
Não sabia que ela era ateia. A minha mãe de tal forma nos metia naquela redoma que mesmo a casa da minha avó ela não nos deixava ir muito. Porque a minha avó, para a altura, descobri depois pelas cartas, era muito emancipada. E se ela se converteu, e penso que se converteu, terá sido porque vivia num meio rural desde que se casara.

Agora dizem-lhe com frequência que se vai converter?
Perguntam muito. E acham que vou ficar muito mais doente porque não acredito em deus. Pronto, há pessoas para tudo. É um problema que resolvi. Não sei, às vezes há pessoas que me dizem que é machismo dizer que não acredito em deus. Não é machismo, simplesmente não penso nisso.

É um bocado insólito dizer que é machismo…
Sim, mas num sentido de orgulho, ser acusada por não precisar de uma divindade e querer fazer tudo sozinha com os meus braços. Até agora tem sido assim e acho que tenho resolvido os meus problemas.

Em relação a este novo livro, de que forma se diferencia do BI?
O BI é totalmente autobiográfico e este está mais direccionado para tentar perceber a Europa que eu gostaria que existisse, uma Europa que respeita a pluralidade das culturas locais. É essa a conclusão, que uma Europa como gosto não emana das directivas de Bruxelas. O BI é um livro mais intimista, totalmente intimista.

Portanto com este ninguém vai poder ficar zangado consigo… Ainda há pessoas que continuam zangadas consigo por causa do BI?
Há, há pessoas inesperadas que continuam chateadas comigo, mas não quero falar sobre isso, sofri muito com isso.

Com o tempo não recuperaram?
Pensava que com o tempo recuperariam. No caso da minha família, algumas recuperaram. Esta irmã, a Isabel, que era casada com o pintor Pinto Coelho, é de direita, não é política, mas é de direita, vive num palácio em Madrid lindíssimo e dá-se com os reis de Espanha e etc e adorava a minha mãe. E no dia em que o livro saiu, ela chorou e veio cá a casa. Não cortou relações comigo, mas fez-me imensa impressão o sofrimento que lhe causei.

Mas quando escreveu o livro não antevia isso?
Não, porque elas sabiam que eu estava a escrever as memórias.

Mas não sabiam que era com aquela crueza…
Não, não sabiam que era com aquela crueza e em relação à Isabel ela nunca cortou relações comigo, mas tentei minimizar o sofrimento dela. E depois como houve amigos dela que disseram horrores, ela nem me diz os nomes, mas houve outros que gostaram muito, mesmo na direita social, e ela começou a pensar ‘se calhar não é tão horrível o que a Mena fez’ e agora damo-nos bem. Os mais novos cortaram relações comigo.

Acha que isso é porque não há tradição em Portugal de se fazerem biografias de pessoas vivas?
Sim, não há. Calhou ser eu a primeira porque estava muito influenciada pelas biografias anglo-saxónicas que li.

Hoje faria um livro destes?
Faria. Igual. Absolutamente igual. Das duas uma: quando se faz uma biografia, ou se está preparada para ser honesta ou então não vale a pena.

Mas depois também é preciso ter arcaboiço para aguentar com as consequências.
E eu aguentei. Paguei o preço.

E não mudaria nada no livro?
Não. A única coisa, a única que me dilaceraria o coração para sempre, era a reacção dos meus filhos.

Como é que foi?
Boa. Especialmente a do meu filho, por ser homem. A Sofia foi óptima e os amigos dela gostaram, a Sofia vive mais no mundo, o meu filho é mais complicado, mas o Filipe teve uma sorte que foi viver em Inglaterra. Preveni-o sobre o que estava a escrever, disse-lhe o que era e que ele ia ficar chocado com o eu ter tido namorados e com o pai ter feito isto e aquilo, e quando o livro saiu – até porque ele é macho – disse “mas oh mãe, o seu livro não tem nada de especial, julgava que a mãe tinha tido uma vida muito mais aventurosa, afinal até é uma coisa insossa”. [risos] Ele também gosta muito de ler autobiografias, tinha lido uma autobiografia de que gosto muito, de um jornalista americano, chamada “Growing Up”, e ele disse “oh mãe, é como a do Russel Baker, qual é o problema?” Há um outro facto em relação a ser mulher que não tinha pensado. O facto de este livro ter sido escrito por uma mulher foi muito mais grave e levantou mais problemas junto do macho do que se fosse escrito por um homem.

Junto dos machos visados no livro?
Não, não, em geral. Se eu fosse um homem, as reacções teriam sido diferentes. Se eu fosse um homem eram menos severos nas críticas. As críticas entretanto abrandaram e houve muita gente que gostou, amigos meus. Um dia disse àquele meu ex-namorado que me levou a ir para Londres em 1962, reencontrei-o no Gambrinus, onde vou pouquíssimas vezes. A mim só me interessa a opinião de cinco ou seis pessoas que admiro muitíssimo e que amo, o resto paciência. E ele disse: “Mas isso é de uma arrogância extrema”. Não, não é, a opinião em geral, a opinião pública, não me vai comover, tenho a certeza de que fiz o livro que quis. Sempre fiz o que quis, queria fazer uma autobiografia como há dezenas em Inglaterra e nos EUA e, portanto, a reacção do público em geral, paciência, se me ostracizarem ostracizam-me. Na universidade acho que os homens foram para as casas-de-banho bradar contra mim, mas eu tinha uma coisa a meu favor: era a pessoa mais importante no meu instituto, era a mais antiga e no grau superior. E portanto se me chateassem dizia-lhes ‘está calado que amanhã ainda me apareces aqui num concurso e eu chumbo-te’. Não ia fazê-lo, mas como presidia aos júris…

É um pouco estranha essa reacção…
Acha estranha? Que as pessoas se choquem com o livro? Não, não é estranho. Acho que o que choca é a sinceridade. Uma das minhas irmãs disse a roupa suja lava-se em casa, eu disse desculpa isto não é roupa suja, isto é a minha vida e se eu quero contá-la, quero ser sincera. Ah, mas foste má com a mãe… mas é mentira, eu não fui má com a minha mãe, tentei dar um retrato da minha mãe, uma pessoa que admiro muitíssimo, uma lutadora, simplesmente comigo foi muito castradora, não sei se foi por ser a mais velha ou por ser a mais rebelde. Portanto, contei aquilo que se passou a meus olhos. De resto, digo logo no princípio, isto não é a Verdade, é a minha verdade, e é isso que, por um lado, fez o sucesso do livro, e por outro gerou a reacção que gerou em certos meios, que no fundo achavam que era melhor eu ser hipócrita.

Se a sua filha Sofia escrevesse um livro nos mesmos moldes da sua autobiografia, como encarava?
Ah, ficava radiante. Acho que é bom.

Mas isso porque tem a confiança de que não foi castradora com ela como a sua mãe foi consigo?
Não, se calhar fui castradora, não sei,. Acho que em Portugal fazem muita falta memórias e autobiografias, em Portugal e nos países latinos não temos essa tradição, porque a Igreja Católica, por um lado, não gosta destas coisas. Nos países católicos pode ser-se hipócrita no que se quiser, até os operários podem pôr os palitos à mulher, podem-se fazer abortos todos os dias e depois dizer que se é contra o aborto, dizer-se que se é a favor da escola pública e depois pôr os filhos numa privada, isso é típico dos países latinos. Os portugueses, sendo pobres, dão imensa importância ao parecer, detestam parecer ridículos. A excentricidade é polida. Alguns amigos meus, com 70 anos como eu, dizem “ah, és tão excêntrica”. Não, não sou excêntrica, sou como sou, não escrevi num papel ‘quando for crescida vou ser excêntrica’. Quero levar a minha vida como quero e não quero que me macem para além do estritamente necessário.

Foi a primeira mulher a tomar a pílula em Portugal, a primeira a doutorar-se em sociologia, também queria ser a primeira a fazer uma autobiografia…?
Não, juro que não planeei isso assim, não tem nada a ver. É que ninguém me consegue amarrar. E se a Sofia me perguntasse eu dizia ‘vá escreve’, ou o meu filho ou o meu marido. O problema é que as pessoas não fazem memórias nem biografias, não sei que raça é que têm a esconder, caramba! Têm medo, é a aparência de certeza!

Foi porque as pessoas ficaram zangadas que decidiu não fazer outro volume?
Não, quando planeei este livro decidi logo que não queria fazer um segundo volume, também por causa da Mary McCarthy, que me inspirou com a sua autobiografia, a continuação é sempre pior. O que fiz desde muito cedo foram diários e agora desde que adoeci também, um diário não publicável, que já tem 250 páginas.

Escreve-o para quê?
Não sei. Acho que neste caso da doença é catártico, faz-me pessimamente à tendinite, tenho uma tendinite gravíssima nesta mão [a direita].

Mas não admite de todo a publicação?
Não. Tenho um texto muito maior, 600 páginas escritas sobre a doença da minha mãe, o Alzheimer. Quando estou muito em baixo em vez de ir ao psiquiatra escrevo. É mais barato e gosto mais. E essas 600 páginas – acho que nunca mostrei a ninguém – quando eu morrer os meus filhos e o meu marido farão o que entenderem. O meu diário, ao princípio nem escrevia todos os dias, agora escrevo, até tem o nome das enfermeiras e dos remédios. Até é bom, porque às vezes esqueço-me ah espera aí, que tipo de quimio é que estava a tomar? E vou lá e vejo. Mas não estou a pensar publicar. E agora como acabei anteontem o livro sobre a Europa, estou a pensar no que vou fazer.

Sente que a doença alterou de alguma forma o seu temperamento, a forma de ser ou de olhar a vida?
Não queria falar mais na doença, mas acho que alterou um bocadinho. Não muito. Olhe, a quimio teve dois efeitos esquisitos. Era a pessoa menos gulosa do mundo e agora passo a vida a comer doces, portanto isso mudou. Porque lá no hospital disseram-me ‘tem de ver um nutricionista e um psiquiatra’ e eu disse ‘doutor, a um psiquiatra não vou, a um nutricionista está bem’. E a nutricionista disse ‘olhe, tem de comer muita gelatina e muitos doces’ e depois quando fui ao médico passado uma semana, ele olhou para as análises que tenho de fazer todas as semanas e disse: ‘que disparate é este? A glicémia disparou, está com uma glicémia altíssima’. E eu respondi: “A nutricionista disse para eu comer doces!” e apetecia-me! O que mudou foram também os apetites do corpo. Acho que não houve assim mais nada… acho que se calhar estou mais terna. Não sei.