Haverá poucas coisas piores numa entrevista do que o entrevistado chegar e as primeiras palavras terem logo a ver com os assuntos sobre os quais não quer, e não irá, falar. Foi justamente o que aconteceu com Maria Elisa. Depois de lançar o seu mais recente livro, “Confissões de uma Mulher Madura” (2015, ed. Esfera dos Livros), sucederam-se inúmeras entrevistas nas quais, invariavelmente, se falou mais de temas como a incursão na política e a polémica saída da RTP, do que do próprio livro. Saturada desta disparidade, quando se sentou à nossa frente, Maria Elisa Domingues disparou, com o tom que sempre lhe conhecemos: “Antes de começarmos, desculpe lá, mas por amor de Deus não me massacre com a saída da televisão, senão levanto-me e vou-me embora. Não aguento mais!”.
É esta rudeza que sempre marcou a forma de estar de Maria Elisa enquanto jornalista, sobretudo no registo da entrevista política. Uma rudeza que acabou por definir o olhar que se tem sobre si. Mas que, garante, é a maior das injustiças: “Sou um caso raro de desajustamento entre o que sou e o que as pessoas pensam de mim”.
Nos últimos meses deu inúmeras entrevistas. Sente-se confortável desse lado da barricada?
Nunca me sinto totalmente. Estou sempre a pensar no que é que eu perguntaria. É mais forte que eu. Mas é claro que a propósito da publicação do livro é importante dar entrevistas, conferências, ir a feiras do livro…
É importante cumprir as obrigações de uma escritora.
De uma pessoa que publica livros.
Tem dificuldade em assumir-se como escritora?
Digo sempre que, até agora, os meus livros são sempre livros de uma jornalista. E são. O método de investigação que uso é o do jornalismo. Não considero aquilo que fiz literatura. isto apesar de o Fernando Dacosta, que apresentou este livro, se fartar de falar do esbater de fronteiras entre o jornalista e o escritor. Mas para mim, que sou uma ávida leitora, a literatura foi sempre algo que nos ajuda a interpretar o mundo de outra maneira, a vermos coisas que não tínhamos visto, a descobrir perspectivas que não nos tinham ocorrido e, nessa medida, a incomodar um bocado. Não gosto de livros que não me trazem inquietude.
Foi sempre uma leitora ávida?
Sempre. Não sei quantos livros terei quando morrer, mas às vezes penso nisso. E li a maior parte dos livros que tenho. Não faço a mais pequena ideia. Mas tenho muitos, muitos, muitos. E também tenho muitos livros que comprei para me preparar para trabalhos. E desde há dois anos ainda tenho os de sociologia da comunicação para o meu doutoramento. Não me sobra tempo, nem me interessa, leitura de praia.
Não leu “As 50 Sombras de Grey”, portanto?
Nem pouco mais ou menos. Nem tenho a menor curiosidade. E não é porque seja puritana! Para aí há uns 30 anos já eu lia o “Histoire d’O”, de Anne Desclos, que era uma coisa muitíssimo ousada. Ia agora ler as sombras de Grey, escritas por uma dona de casa que tem uns devaneios? Seria capaz de ver no cinema, porque aí, desde que goste dos actores, sou capaz de ver filmes mais leves. Mas tenho de gostar dos actores porque, para mim, o acting é das coisas que mais respeito na vida.
É algo que lhe ficou das experiências como actriz?
Acho que sim. Por exemplo, os filmes com a Meryl Streep vejo sempre.
Faz a conta contrária à que referiu e pensa quantos livros tem ainda tempo de ler?
Não, essa não faço. Mas faço contas em relação a outras coisas.
Como por exemplo?
Em relação a viagens. E depois tenho uma enorme preocupação: queria muito deixar as coisas arrumadas para o meu filho. E isso passa por uma coisa que digo há muitos anos e que é escrever a minha biografia. Há muitos caixotes de papéis que só tenho guardados com esse objectivo e portanto espero que, um dia, aquilo vá tudo para o lixo, senão coitado do desgraçado. Penso que ainda tenho algumas etapas que gostaria de realizar.
Mas é um pensamento recorrente?
É algo com que lido bem, mas não vou dizer que é uma coisa que me deixa aos pulos. Quando temos 30 anos não é normal pensar quanto anos é que ainda se tem para viver. Mas quando se tem 65 é claro que é normal esse medo do fim da vida, esse não gostar. Penso nisso, mas tento viver o mais serenamente possível com isso. Mas é um pensamento que não se controla. E que não é agradável. A Doris Lessing tem uma frase muito engraçada sobre a velhice, que disse quando tinha uns 90 e tal anos: “A melhor coisa da velhice é o desapego”. Eu ainda não sinto esse desapego. Nem às coisas nem às pessoas, mas é algo que gostava de sentir, até porque sou uma acumuladora. Guardo papéis, livros, objectos, roupa antiga… Espero vir a sentir esse desapego e livrar-me de imensa coisa. Porque a tralha não ajuda em nada a cabeça. Nenhuma espécie de tralha. Deve ser muito bom sentir esse desapego e reduzirmo-nos ao mais importante – nós, os sentimentos e aqueles que nos são queridos. Ainda gostava de passar por isso.
Portanto ainda há coisas a aprender aos 65 anos?
Imensas! Acho um bocadinho estranho as pessoas acharem que já sabem tudo. Vou ser muito imodesta: acho que é preciso ser-se muito burro para se pensar que já se sabe tudo. Seja com que idade for. O mundo é tão vasto que há sempre coisas para aprendermos. Estou a fazer um doutoramento num assunto e estou sempre a pensar noutros que também podia fazer.
Está a fazer um doutoramento aos 65 anos porque sentiu necessidade de desafios depois do fim da carreira televisiva?
Quando saí da televisão houve um vazio. Nessa altura tive um convite para ir a Coimbra moderar um debate onde estavam várias pessoas que conhecia e que se estavam a doutorar, e comecei a pensar nisso. Também teve muito a ver com o facto de, desde que os meus pais morreram, tenho-me aproximado muito das suas raízes – quer do Baixo Alentejo, porque a minha mãe era de Moura, quer de Coimbra, de onde o meu pai era natural. Mas acho que só avancei para o doutoramento porque havia um vazio à minha volta. Enquanto fazia programas com carácter regular não teria tido tempo.
Mesmo que quisesse não tinha condições?
Não. Sobretudo nos últimos anos da minha mãe. Mesmo com alguma ajuda era um full time job, ao qual se juntava o trabalho na televisão. Não teria sido possível. Mas naquela altura fez sentido. A vida é feitas destas pequenas coisas, e a minha vida foi muito mais feita de situações fortuitas do que decisões muito elaboradas. Se calhar, se não tivesse ido aquele congresso não teria feito o doutoramento.
É curioso dizer isso porque não corresponde, de todo, à imagem que as pessoas têm de si.
Eu sei. Sou um caso raro de desajustamento entre o que sou e o que as pessoas pensam de mim.
A ideia que se tem de si…
[interrompe] É que eu sou muito calculista.
E ambiciosa, fria, arrogante… Perturba-a esse desfasamento?
Esse desfasamento, para mim, vem carregado de estranheza.
E de um sentimento de injustiça?
Sim, eu acho-me uma injustiçada, embora odeie pensar essas coisas.Tento sempre não as pensar porque há pessoas muito mais injustiçadas e acho que nem tenho o direito.
Já percebeu como nasceu essa imagem?
Há uma coisa fundamental: tive poder – apesar de na altura nem ter noção de que tinha esse poder – muito cedo. Mandei em muita gente muito cedo. Há 35 anos, quando tinha 30, mandava em 600 pessoas, 70% das quais homens. Foi muito complicado. Acho que foi isso que me deu esta imagem. Se calhar, até para me defender do medo que eu própria tinha de falhar, dei essa imagem muito mais dura do que aquilo que era.
É algo que ouvimos frequentemente da parte de mulheres que assumem cargos de chefia ainda muito jovens.
Sim, arranjam uma postura mais dura, que muitas vezes até se reflecte no guarda-roupa. Não é o meu caso, acho que fui sempre bastante suave e feminina a vestir-me e não acho que seja preciso ter um fato de calça e blazer e um ar mais masculinizado. Mas sim, acho que logo no início da minha carreira contribui muito para essa tal imagem. E depois, tem a ver com a postura da pessoa que faz entrevista política, que foi o que fiz durante muitos anos. Para fazer entrevistas políticas não se pode ter um ar muito doce, etéreo e angelical. Faz parte do jogo. Mas as imagens ficam. E é muito difícil lutar contra uma imagem que está estabelecida. E acho que as pessoas nunca quiseram ver o outro lado.
Curiosamente, sempre me passou mais a imagem de ser uma mulher frágil que criou uma carapaça justamente para ocultar essas fragilidades.
Óptimo. Porque eu sou mesmo uma pessoa frágil. Essa descrição é muito mais próxima daquilo que eu sou do que a ideia da mulher implacável. Sou muito mais uma mulher frágil do que implacável.
Nos últimos anos, até com os livros que lançou – “Viver com Fibromialgia” (2008), “Amar e Cuidar” (2012) e “Confissões de uma Mulher Madura” (2015) – tem assumido como a sua batalha dar-se a conhecer e dar a conhecer as suas fragilidades?
Não é propriamente uma batalha, mas se estou, por exemplo, a dar entrevistas, faço questão de tentar que as pessoas finalmente percebam aquilo que sou. Porque eu não gosto da outra imagem que têm.
Se fizesse tábua rasa e se apresentasse agora às pessoas, o que diria?
Não faço ideia. Nós dizemos o que dizemos em função das circunstâncias.
Mas jornalista apareceria sempre na apresentação que faria de si?
Sim! Eu sou intrinsecamente jornalista. É o que preencho em todos os documentos, é a minha profissão. Fui equivalente a diplomata durante um período de cerca de cinco anos, mas nunca na vida escrevi num passaporte “diplomata”. A minha profissão, aquilo para que estudei, aquilo que sou, é jornalista. Ser jornalista é aquilo que me define.
Se ser jornalista é o que a define, estar afastada da comunicação social faz da sua vida um exercício permanente da saudade?
A nostalgia, em termos profissionais, não me vai bem. Em termos pessoais até me caracteriza muito. Mas em termos profissionais acho sempre que podem surgir outras oportunidades, não vejo uma porta fechada. Sobretudo desde que comecei a falar da saída da RTP, que já aconteceu há três anos, mas da qual apenas falei recentemente, sinto que não tenho nenhuma porta fechada.
Imagina-se a voltar a trabalhar como jornalista?
Acho que é possível. Ainda recentemente tive um convite concreto para voltar a fazer jornalismo em televisão. Não quer dizer que esteja nada decidido. Mas mesmo na fase mais dura, quando senti que tinha de me afastar da RTP porque não tinha trabalho, nunca pensei que isso significava o fim.
Talvez tenha a ver com o facto de ter tido sempre, ao longo do seu percurso profissional, entradas e saídas do jornalismo?
Sim, talvez tenha a ver com isso. Em Portugal, enquanto houve só a RTP, as pessoas diziam com muito orgulho que estavam lá há 20 anos e nunca tinham saído. Mas eu acho que tive a enorme sorte de ter convites e oportunidades para ter outras experiências que me enriqueceram imenso, como fazer a “Marie Claire” ou fundar o Serviço de Comunicação da Fundação Gulbenkian. Noutros países um currículo só com um emprego é muito mal visto, o normal é que, se somos competentes, nos queiram noutros sítios. Felizmente foi isso que me aconteceu. Tive experiências muito ricas.
Não se arrepende de nenhuma delas?
Não. Tirando, talvez, a de ter ido para o parlamento. Mas é difícil pensar nisso agora porque, lá está, nós somos sempre aquilo que as circunstâncias definem no momento. Fui para o Parlamento com muita ilusión, como dizem os espanhóis. Fui a acreditar muito no projecto do Dr. Durão Barroso para Portugal. Se tudo se repetisse era muito provável que voltasse a aceitar. É claro que, se soubesse que o entretenimento do Presidente da Comissão de Ética [Jorge Lacão] na Comissão de Ética da Assembleia da República, era pôr-me na rua como se não houvesse mais nada mal no país… É caricato, é o mínimo que posso dizer.
Sentiu-se encurralada?
Totalmente. Senti-me no centro do ciclone, sem a menor defesa.
E esvaziada de lutas?
Totalmente, não me deixavam dizer nada! Uma coisa que as pessoas não sabem é que os deputados não podem falar quando querem. Tem de haver decisão da direcção do grupo parlamentar, que define quando falamos.
Sobretudo em relação aos independentes?
Sim. Aí, então, é que fui mesmo muito ingénua! Não consigo perceber como é que aos 50 anos fui tão ingénua. Ainda hoje não percebo. Nunca fui jornalista de parlamento, apesar de ter lidado com tantos políticos. Acho que é por isso que fui tão ingénua e não me apercebi do ódio que os partidos têm aos independentes. Tratam-nos como se lhes fizéssemos concorrência. Lembro-me de um episódio em que um semanário que fez um grande destaque a dizer que eu tinha fugido, sem pagar, de um hotel em Caminha depois do comício inaugural da saison. Eu tinha vindo para Lisboa, nem dormi lá! Estas coisas são armadilhadas a partir do interior do próprio partido.
Como é que, ainda assim, aguentou dois anos?
Foi horrível, foi uma agonia. Mas tinha amigos lá dentro que me ajudaram muito. Curiosamente a maioria era do PS: o Dr. Medeiros Ferreira, o Dr. Fausto Correia, o Dr. António Costa e até a Dra. Maria de Belém. Depois, na bancada, tinha meia-dúzia de amigos, como a Graça Proença de Carvalho, a Clara Carneiro… Acho que se aperceberam do que eu estava a viver e tiveram pena de mim. Nunca me esquecerei disso.
Falou de António Costa, que apoiou para a Câmara Municipal de Lisboa…
Duas vezes.
E está preparada para o apoiar agora?
Estou preparadíssima! Embora não goste de muitas das pessoas do PS de quem ele está rodeado, acredito nele. É uma pessoa séria e honesta – não estou a dizer que estes que lá estão não são –, mas acredito que nos vai ajudar a sair disto. Porque este projecto, a forma como este governo governou não serve o país.
Esse apoio pode passar por uma presença activa?
Nunca pensei nisso. Mas aquilo que ele me pedir, com certeza que farei. Conheço-o desde muito novo. Conheço-o desde que eu, a mãe dele [Maria Antónia Palha] e a Margarida Marante fomos despedidas da RTP por causa das revistas femininas onde também trabalhávamos. Ele foi advogado da mãe, estamos a falar há quase 30 anos. Ele era muito jovem, mas ficou-me sempre a ideia de que era uma pessoa que pensava bem e que defendia as causas em que acreditava. Fui mantendo sempre contacto com ele e entrevistei-o várias vezes. Acho que foi um óptimo presidente de Câmara.
Contrariando as expectativas de uma vitória garantida, o PS está a passar um momento…
Muito complicado, a coisa não se afigura fácil.
Não é líquido que o PS ganhe. Gostava que ganhasse porque acho que é preciso uma alternativa a este governo e a estas políticas. É preciso tentar uma alternativa.
Falou de Maria de Belém, provável candidata à presidência da República. Está na altura de uma mulher presidente?
Adorava ter uma mulher presidenta! Mas eu não tenho nada essa mania do toque feminino na política. Acho que é um grande engano essa coisa de se pensar que há uma maneira feminina de fazer política e que, se as mulheres tivessem mais poder, não mandavam os filhos para a guerra. Não acredito nisso. Mas gostava de ter uma mulher na presidência porque há mais mulheres do que homens. Acredito piamente na paridade. Nós, mulheres, somos tão capazes quanto os homens.
Sentiu-se tratada de igual forma quando assumiu cargos de chefia?
Nem sempre. Mas pelas pessoas que considerava mais inteligentes e que eram aquelas que, para mim, mais contavam, sim. Concretamente os homens que me convidaram para desempenhar esses cargos: o Dr. Proença de Carvalho, o João Soares Louro, o professor Ferrer Correia na Gulbenkian, o Dr. Balsemão na SIC… Essas pessoas acho que nunca me olharam como se fosse menos por ser mulher. Mas ainda em relação à Maria de Belém, é azar. Fiquei contente quando o Dr. Sampaio da Nóvoa concorreu porque acho que é uma lufada de ar fresco e uma pessoa séria. Mas sou amiga da Dra. Maria de Belém e sei que tem uma capacidade de trabalho como poucos. Acho que é uma pessoa capacíssima de ser presidente. É um azar que o PS tenha dois bons potenciais candidatos. Não vai ser fácil. É mais um berbicacho para o António Costa.
Disse que considerava que ter tido sempre muitas oportunidades de trabalho a enriqueceu. Mas considera que também serviu de motivo para que lhe apontassem o dedo, sobretudo no jornalismo?
Sim. Fui apontada e fui penalizada directamente. Mas acho que isso é sinónimo de pequenez.
Em que medida diz ter-se sentido penalizada? Na saída da RTP?
Não me senti, fui. Por decisões específicas. Mas as pessoas são muito hipócritas, portanto no trato não mostravam nada.
Mas não admite que podiam ter razão em apontar-lhe o dedo porque efectivamente pode haver um conflito de interesses quando se vai trabalhar para o outro lado da barricada?
Mas isso só se aplica à parte da política. Aí, sim, assumo que pode haver um conflito de interesses. Mas isso aconteceu com outras pessoas. Temos o caso da Manuela Moura Guedes, do Vicente Jorge Silva… Porque é que só se fala de mim? Acho que pesou o facto de ter sido pelo PSD. Mas eu não quero falar mais sobre isto.
Todas estas situações de que falou servem de razão para querer escrever a sua biografia? Vai ser o momento em que conta tudo?
Sempre quis escrever as minhas memórias. Essencialmente porque acho que tenho de deixar o testemunho de uma mulher que teve um trajecto pioneiro dentro da televisão em Portugal, a partir do 25 de Abril. Acho que tenho essa obrigação.
Porque ainda não o fez?
Porque ainda sou nova! Antes achava que era por volta dos 65, mas agora estou a apontar para os 70. Mas este livro agora não surgiu como introdução a uma biografia. A seguir a escrever o livro sobre o cancro, achei que tinha de fazer uma coisa mais leve. E nesta altura ainda estava na RTP, apesar de sem trabalho, e a minha mãe ainda era viva. Percebi que me apetecia escrever sobre vários aspectos da vida das mulheres, com eventuais conselhos para outras mulheres.
Esse lado de conselheira que assume neste livro tem alguma coisa a ver com a sua mãe e a relação que sempre tiveram?
A minha mãe era a pior conselheira do mundo. Não tinha paciência para ensinar nada, é por isto que eu não sei cozinhar. Mas foi um grande exemplo para mim, em termos de postura, em termos até de alimentação saudável. A minha mãe, aos 80 e muitos, saía todos os dias de casa, chovesse ou fizesse sol, para dar uma caminhada de uma ou duas horas. Ficou viúva aos 60 e tal anos e acho que essa foi a forma que encontrou de não se isolar, de continuar a sair. Foi sempre uma mulher de regras, de disciplina de vida. De tal forma que conseguiu reverter a osteoporose. Era uma mulher cheia de força de vontade. Já o meu pai era totalmente hipocondríaco. E eu era a miúda que falava sozinha e a quem o pai levava ao médico se espirrasse.
O que a levou a escrever sobre a fibromialgia e, desta forma, dar a conhecer algo que era tão íntimo?
Foi uma questão de sobrevivência. Tornei-me uma pessoa diferente, na altura não havia a medicação que há hoje e ninguém acreditava nas pessoas com fibromialgia. Mas a ideia do livro não foi minha, foi do meu médico, o professor Jaime Branco.
Mas depois sentiu que tinha feito algo que ajudava as pessoas?
Senti, e é das coisas que mais me orgulho de ter feito. Acho que pus a fibromialgia no mapa.
Como foi o processo da descoberta da doença?
Foram nove ou dez meses de loucura, de exames a tudo, das hipóteses mais catastróficas, entre as quais cancro. Fiz exames, biópsias e punções a tudo! Quando finalmente houve um veredicto, pelo menos sabia que, de tudo o resto, estava óptima. Mas o pior de tudo não foi quando soube, foi quando não sabia o que tinha e não me conseguia mexer. Desde a adolescência que tinha dores fortíssimas nas pernas, mas o meu pediatra dizia que eram dores de crescimento. Tinha pesadelos com esta coisa das dores de crescimento!
Também tem esse sentimento de ter ajudado muita gente com o livro que escreveu sobre o cancro, mas de se ter ajudado também a si?
Ajudei-me a mim, claro, serviu-me de closure. Mas sobretudo tentei ajudar os cuidadores informais.
O seu primeiro livro é sobre uma doença que tem, o segundo acerca de uma doença com a qual conviveu de perto, através da sua mãe, este último serve um pouco de muro das lamentações cruzado com um gabinete de aconselhamento de uma mulher de 65 anos. Em quem pensou para escrever este livro?
Na minha neta. Quer dizer, pensei em mim e nas mulheres em geral, sobretudo nas que têm a minha idade. Mas dediquei o livro à minha neta porque ela é um caso de feminilidade invulgar. Tem um sentido estético extraordinário e pouco convencional. É muito despachada e divertida. Ela tem seis anos e acredito que ela vai viver num mundo em que já vai haver paridade a sério.
O que é que uma mulher de 65 anos sabe que uma de 30 não sabe?
Há umas de 30 que resolvem as coisas melhor do que eu! Mas o que sabe… Sabe o que é ser avó, que é uma coisa importante e que me faz pensar muito. A relação com os netos é algo complexo. E depois, aos 65 anos, há a questão da serenidade. No meu caso, a minha serenidade tem muito a ver com o ter encontrado uma relação sentimental estável. Quando não se tem isto, para estar sozinha é preciso saber estar bem consigo própria. Mas eu acredito na família e acredito nesta coisa de cuidar das crias. Desde que os meus pais morreram – o meu há 20 e tal anos e a minha mãe há três – ficou claro para mim que a chefe da pequena tribo era eu. E assumo essas tarefas. Com muita alegria. E sem me esquecer de mim como mulher, foi isso que me permitiu viver um amor nesta fase da vida. Acho que quem se sente infeliz não pode estar lá para os outros.