Chegar à Afurada é quase como entrar num filme do Kusturica, mas com sotaque cerrado e cheirinho a peixe grelhado no ar. As portas da rua nunca se fecham, os bancos de jardim substituem os sofás da sala e as conversas com vizinhos tornam qualquer televisão um objecto dispensável. Em plena hora de almoço, é ver as mulheres a fazer brasa no grelhador montado na soleira da porta, enquanto esperam pelo peixe que os homens da casa trazem nas redes.
Tifas já foi ao mar e tem agora honras de descanso na esplanada do Central.
{relacionados}
“Se não estiver a pescar, é aqui que me encontram”, garante. Com 54 anos, são já 35 passados entre barcos e redes de pesca. “Quando estou em alto-mar, olho em volta e penso que escolhi uma vida bonita”, conta, com um sorriso que se fecha quando se lembra dos dias em que o mar é ingrato. “Já caí duas vezes borda fora”, refere, apressando-se a garantir que esses episódios não foram suficientes para o deixar com medo do trabalho de todos os dias.
Com 70% da população a viver do mar, é de se esperar que um dos cafés mais concorridos da freguesia sirva de porto para os dias em que a vida se faz em terra. “Sábado é o melhor dia da semana”, garante Ana. Além de ser o dia oficial de descanso para quem se dedica à pesca, é também o dia em que ela e o marido, Pedro, recebem o total das despesas que os pescadores acumulam. “Os pescadores recebem à semana e, por isso, também é à semana que me pagam”, explica. Assim, o início de fim-de-semana é de festa neste café, com as mesas cheias de gente e de petiscos que Ana vai pondo de maneira a aguçar a vontade da próxima bebida. “Ofereço umas pataniscas, uns queijinhos, umas iscas”, enumera, e pisca o olho em sinal de quem acaba de revelar um dos segredos da casa. “Sei que isso puxa a mais uma rodada.”
Mesmo com a nossa visita a calhar num dia de semana, Pedro não tem mãos a medir para responder aos pedidos de quem vai chegando de barriga cheia a precisar de um empurrão para digerir o peixe do almoço. É de copo de champarreão na mão que encontramos David, que assume o balcão como o seu local de eleição. “Assim falo com quem me está a servir e estou atento a quem chega.” As fixação por posições estratégicas talvez tenham ficado dos mais de 40 anos passados em alto-mar. “Tive uma vida muito dura”, recorda, com tempo para lembrar o episódio em que o barco onde seguia naufragou. “Salvámo-nos todos, graças a Deus.”
Café com arte
A arquitectura do Central da Afurada é do mais comum possível: sala quadrada, balcão ao fundo e esplanada montada à porta. Não fossem as cores garridas que saltam da parede e este café seria apenas mais um. “Isto são umas pinturas que o António fez”, explica Pedro. O António, para as gentes da Afurada, é o agora mundialmente conhecido Pantónio, artista português responsável por pintar, por exemplo, as estruturas que substituíram os painéis de cadeados na Ponte das Artes, em Paris. “A sério?”, pergunta Pedro com ar incrédulo. “Ele parecia um desgraçado quando cá chegou.” Quem lidou mais de perto com o artista conta que António chegou à Afurada numa carrinha que lhe servia de casa.
Em troca de comida e alguns banhos, acabou por ficar mais de um ano a pintar os cafés da freguesia, deixando também a sua marca nos contentores que enchem o cais onde os pescadores atracam os barcos. “Sendo assim, isto ainda me vai valer dinheiro”, brinca Ana, que prefere deixar as artes para os outros, ocupando-se do que lhe sustenta a família. Com 27 anos, tem em casa o João Pedro com dez e, ao colo, o Salvador, que a faz desviar as atenções dos pedidos que se vão acumulando no balcão. “É muito difícil gerir tudo, família, café, mas têm sido tempos bons.” Quando assumiu o negócio, em 2010, tanto ela como o marido, Pedro, tinham zero experiência em restauração, o que os obrigou a aprender com quem estava disposto a ensinar.
“Às vezes eram os próprios clientes que nos iam dizendo o que pôr no copo”, lembra Pedro. Para Ana, menos desenrascada no atendimento, recorda como “terrorífico” o primeiro dia em que ao balcão lhe chegavam pedidos que não sabia decifrar. “Sabe o que é um caralhinho?”, pergunta, prontificando a resposta perante o nosso ar embasbacado. “É uma ginja!” A gargalhada é geral, mas Pedro, mais racional, interrompe o momento para lembrar que apesar da boa relação com os clientes, nem sempre o trabalho é gratificante o suficiente para querer continuar. “Já me arrependi algumas vezes de ter aberto o café”, admite. O olhar dos clientes mais atentos à conversa levantam-se na sua direcção. “Mas depois deparo-me com estas caras e como é que eu os ia deixar sem poiso?”
Palavras destas dão direito a mais uma rodada. David, que mantém o seu lugar marcado ao balcão, não resiste a uma última intervenção antes de se retirar para um passeio. “Só lhe quero dizer uma última coisa: a Afurada é feita de pescadores e as pessoas que arriscam a vida todos os dias tornam-se especiais.” Deixa a frase em suspenso, mas quem a ouve acena a cabeça em concordância. “Somos feitos doutra fibra”, ouve-se de uma mesa que, apesar de calada durante toda a manhã, agora falou por toda uma freguesia.
Ficha do Café Central da Afurada
Ano: 2010
Dono: Pedro Tavares
Especialidade: Prego à Afurada, 1€
Preço do café: 0,60 cêntimos
Preço da cerveja: 0,85 cêntimos
Clube de futebol do dono: Porto
Curiosidade: Tem livro de fiados, mas o fiado é só para alguns